Ex votos: a fé de um povo de um lugar

Em muitos lugares do mundo, a fé do povo é representada através de objetos que refletem crenças e dão sentido a diferentes rituais. Os ex votos, no caso, funcionam como uma manifestação artístico-religiosa que dá materialidade à comunicação com o divino e ainda desperta muitos artesãos brasileiros para sua vocação para a escultura
Laís Domingues

As paredes das salas dos milagres dos santuários em Juazeiro do Norte (CE) e centros de peregrinação de todo o país são testemunhos da fé de um povo que agradece pelas graças recebidas. Os objetos expostos nessas salas representam crenças e fazem parte de rituais com diferentes características, mas o mesmo objetivo: a comunicação com o divino.

Sala dos Milagres no Horto de Padre Cíceroem Juazeiro, no Cariri cearense

O artesanato tem, neste contexto, uma importância não apenas artística, mas também mística, porque as esculturas aproximam o homem do seu “deus”, de suas figuras míticas, divindades ou de seus representantes: oxum, tupã, padre Cícero, São Francisco. Dentre essas exculturas, estão os objetos ex-votivos: esculturas de madeiras que funcionam como uma manifestação artístico-religiosa doada às divindades em agradecimento por um pedido atendido: proteção contra catástrofes naturais, cura de doenças ou de sofrimentos amorosos, entre outros.

São representações milenares e desejos pessoais e coletivos que permearam e permeiam ecumenicamente diversas religiões e credos no mundo, ocupando um lugar de documentação da fé e de dinâmicas espirituais diversas. Nessa rede de fé e semiótica, inúmeros artesãos e artistas se colocam à disposição para representar os sonhos, desejos e milagres alcançados pelos fiéis. Em muitos casos, as encomendas de ex votos são o primeiro estímulo para que eles passem a se profissionalizar e rentabilizar suas produções de esculturas, abrindo caminho para uma trajetória promissora nesse universo de dar forma e sentido a objetos que representam o imaginário coletivo.

Alguns pesquisadores defendem que a tradição de se criar imagens com um objetivo espiritual tem origem na Grécia antiga, há pelo menos 4 mil anos, mas também é possível considerar que as pinturas rupestres que - muitas vezes - representavam cenas de rituais e celebrações de colheitas e nascimentos, sejam, na verdade, as primeiras inspirações para a criação dos ex-votos pictóricos encontrados em inúmeros templos.

Segundo a professora da UFCA,Carla Façanha de Brito, "ex-voto é uma representação comemorativa do cumprimento de uma promessa feita em decorrência de um milagre obtido. É uma 'paga'. Antes dele surgir, houve uma promessa para um santo ou alguma divindade para que esse pedido fosse realizado".

Sendo assim, esses objetos/pinturas ocupam um lugar de documentação da fé e de intermediação na relação com uma divindade.  Chamados também de "milagres riscados", essas oferendas se materializam através de fotografias, pinturas, cabelos, esculturas, roupas, cordão umbilical e objetos das mais diversas naturezas deixados, geralmente, em locais considerados sagrados, como templos e santuários.

O desejo de escrever esse texto principiou quando visitei as chamadas salas dos milagres no Horto de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, no Cariri Cearense. Foi lá que me impactei com a infinidade de representações entalhadas em madeira e as milhares de fotos e objetos deixados pelos fiéis e romeiros que visitam o local uma ou mais vezes ao ano.

Juazeiro do Norte é um exemplo de cidade que surgiu a partir da fé e se tornou um dos maiores pólos religiosos do Nordeste e, por consequência, uma das cidades mais importantes do estado do Ceará. O município surgiu a partir da permanência dos romeiros de todo o Nordeste que iam encontrar e pedir a intercessão de Padre Cícero Romão Batista, um dos mais famosos milagreiros para os adeptos da fé católica. O primeiro milagre creditado a ele foi realizado junto à Beata Mocinha, mulher negra, pobre e camponesa, que vivia no Cariri. Por dezenas de vezes consecutivas, a hóstia entregue pelas mãos do Padre Cícero transformava-se em sangue quando encontrava a boca de Beata Mocinha. Os devotos diziam ser o sangue de Cristo.

Exames foram feitos nos lenços manchados e comprovaram que o material era sangue. Ao perceber que padre Cícero ganhou grande popularidade, até mais que a própria igreja, dirigentes católicos o proibiram de receber romeiros e celebrar missas. O povo continuou, porém, indo para Juazeiro encontrar o "Padim". Foi assim que o lugar que, a época do milagre era uma vila camponesa com poucas casas, se transformou em uma das maiores cidades do Nordeste.

No museu em sua homenagem, os objetos ex-votivos são expostos nas salas dos milagres, mas também passam por uma curadoria da equipe do espaço, com apoio metodológico de grupos de pesquisa da Universidade do Cariri, que documentam, fotografam e selecionam as peças que permanecerão expostas no espaço por tempo indefinido.

Os demais ex-votos passam por rituais de queima anualmente ou são reaproveitados, como é o caso das peças em madeira, que retornam ao comércio local para mãos de artesãos, que lixam e vendem a peça novamente, criando uma economia circular e ecológica. Seguem, assim, um dos princípios propagados por Padre Cícero - que pregava a preservação do meio ambiente. O mesmo acontece  com os vestidos de noiva deixados por mulheres que alcançaram o sonho de se casar e deixam as vestes como oferta a Padre Cícero. Muitos desses vestidos são alugados a outras noivas e o valor arrecadado é revertido para a manutenção do museu e do santuário.

Para o pesquisador José Cláudio Alves de Oliveira, "o  ex-voto  e  as  conjunturas formadoras dos aspectos socioeconômicos, habitacionais, políticos e da saúde são um ponto de extrema importância, pois referencia a questão do testemunho, do ex-voto como documento que  revela  situações  nos  anseios  individuais  e  coletivos,  os  valores  sociais  expressos,  em determinado  período,  tendo  como  primeiro  plano  as  atitudes  individuais  e  coletivas  do homem, visualizadas no objeto".

 

 

Sobre o autor

Laís Domingues

Laís Domingues é arte educadora, artista visual e têxtil e produtora cultural pernambucana. Desenvolve suas pesquisas sobre memória e tramas sociais através da fotografia, do vídeo e da cultura popular desde 2016. É também idealizadora do projeto "Bordando o Feminino", financiado pelo Funcultura da Secult-PE, através do qual viveu por 5 meses em Passira, no agreste pernambucano, compartilhando saberes e recebendo aulas com mestras do bordado de Passira.
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