Futuro ancestral: o fortalecimento das identidades indígenas através da produção artística, literária e atuação política de etnias brasileiras

Cunhado pelo escritor Ailton Krenak, o termo Futuro Ancestral nos instiga a refletir sobre a relevância que muitos outros pensadores, artistas e ativistas indígenas têm ganhado em nossa sociedade, criando narrativas decoloniais e perspectivas de um Brasil mais plural
Camila Fróis

Nascido na região do Vale do Rio Doce, território do povo Krenak, Ailton, recentemente eleito membro da Academia Brasileira de Letras, é internacionalmente reconhecido como filósofo, poeta e ambientalista, sendo uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro. O livro Futuro Ancestral reúne transcrições de diversas falas do autor em diferentes ocasiões que trazem a ideia de que precisamos cuidar dos rios que nos conectam com o futuro. São textos que causam profundo impacto em quem lê, com uma visão de vida simples e preciosa. Em resumo, as mensagens do ativista, recentemente eleito para a Academia Brasileira de Letras, nos convida a pensar a sustentabilidade enquanto construção de um modo de viver em ques seja possível garantir saúde, educação e cidadania na sociedade, sem se esmagar outros seres (rios, animais e florestas) e outras culturas, como as indígenas,

O livro também  instiga uma reflexão sobre uma história de resistência e de uma violação que atravessa os séculos e permanece fazendo vítimas durante as lutas pelo território. Em 2022, 38% das pessoas assassinadas em conflitos no campo no Brasil eram indígenas, de acordo com Relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de 2023. Apesar disso, é inegável que cresce o número de pessoas indígenas que estão construindo novas narrativas e ocupando espaços cada vez mais nobres na nossa sociedade, como parlamentos, universidades e até a academia de letras, desenhando um futuro ancestral. Seja na ciência, na literatura, na arte contemporânea e na política, é notório o crescimento do protagonismo e da relevância de indígenas que buscam manter o link com suas tradições, ou pelo menos com as reinvenções urbanas delas. Um desses espaços de poder que têm sido ocupado por lideranças indígenas é o espaço do museu. Em 2023, o MASP, uma das maiores instituições de arte do país, apresentou ao público a exposição “Histórias Indígenas”. Com a curadoria de artistas e pesquisadores indígenas ou de ascendência indígena, a mostra reuniu obras de várias mídias e tipologias, origens e períodos. A ideia era apresentar a perspectiva de artistas indígenas que mesclam referências cosmológicas e visualidades indígenas com apropriações de linguagens e tecnologias do Ocidente, problematizando narrativas hegemônicas sobre os povos originários do Brasil.
 

Parlamentares indígenas durante sessão especial na Câmara federal em 2023. 

“O mundo é feito de infinitas narrativas e perspectivas sobre a vida, cultura, educação, memória, ou história e não de uma linearidade imutável congelada no passado ou presente. Para os povos originários, o mundo é composto da atemporalidade que atravessa toda a criação da humanidade. As civilizações gregas e romanas são consideradas o berço das sociedades ocidentais modernas do continente americano conhecido como Novo Mundo. No entanto, existem culturas milenares tão ou mais antigas que o próprio Velho Mundo, que originam obras de arte que desafiam concepções de existência e lugares de pensamento. Essas subjetividades são negligenciadas e inferiorizadas por sua origem não eurocêntrica, ou greco-romana”, dizia o texto curatorial da mostra.  

O fortalecimento do ativismo indígena e a revitalização de tradições e saberes em produções artísticas de diferentes etnias contrariam prognósticos pessimistas de etnógrafos do século passado.

As etnias que “re-existiram”

Nos anos 60, alguns antropólogos brasileiros demonstraram publicamente sua preocupação com os desastrosos resultados da política da integração então adotada pelo Estado brasileiro e temiam o desaparecimento dos indígenas como cultura autóctone e originária. Na década de 1959, o importante etnógrafo Darcy Ribeiro identificou quase oitenta grupos indígenas extintos ao longo do século XX. Por isso,  diante da escalada do agronegócio sobre terras indígenas do país, o pesquisador pensou que não haveria saída para estes povos, a não ser integrar-se totalmente à cultura dominante, desvinculando-se de suas raízes. Para evitar esse processo, ele defendia que o estado brasileiro garantisse a possibilidade de proteção desses povos em reservas, onde os  indígenas deveriam permanecer o mais isolados possível a fim de se evitar as nefastas consequências sociais e culturais do seu contato com os brancos. 

A despeito da inconteste necessidade da demarcação de terras para se coibir a sistemática violação de direitos humanos cometida contra os povos nativos naquele momento, outros antropólogos e gestores públicos assumiram uma postura paternalista no sentido de orientar como deveria se dar ou não o contato entre indígenas e brancos, a despeito de uma noção de autonomia étnica dos povos nativos em relação ao seu próprio destino. Esse tipo de pensamento refletia um grau de paternalismo ainda impregnado da ideia de tutela que atravessava o desejo de  se “salvar os índios”.

O fato é que as previsões mais pessimistas dos antropólogos da época sobre o destino indígena não se confirmaram, possivelmente pelos efeitos das políticas de demarcação e proteção de indígenas ainda isolados, que se sucederam  e se inspiraram na criação do Parque Indígena do Xingu, primeira terra indígena então demarcada. A curva demográfica dos povos indígenas começou a inverter seu ciclo de declínio a partir dos anos de 1970, também em função de programas de saúde e educação adotados pelos órgãos indigenistas, entre outros fatores, como a construção de importantes dispositivos constitucionais a favor dos povos indígenas nas últimas décadas do século XX.

Parque indígena do Xingu, criado em 1961, foi a primeira grande terra indígena a ser demarcada no país. Foto: Débora Schuch / Funai

Nos dados de Darcy Ribeiro de 1977, eram enumeradas 143 etnias, enquanto hoje se trabalha com o universo de 305 povos indígenas. Nas esferas locais, também houve transformações nas dinâmicas de relação entre indígenas e não indígenas. Os ofaié, estudados por Darcy, por exemplo, “reexistiram”, cresceram e se afirmaram culturalmente: lançaram um dicionário do seu idioma e uma coleção de moda com seus grafismos. Assim como eles, muitos outros povos considerados extintos por Darcy (ou destituídos de seus laços identitários) viram, na década atual, sua população crescer, revitalizando ou reinterpretando práticas tradicionais. 

A importância da Constituição de 1988 para o reconhecimento dos direitos indígenas 

Por isso, para compreender essas tramas simbólicas tecidas no Brasil de hoje, é necessário redimensionar a questão indígena, a partir de novos parâmetros, que se tornaram chaves para a resistência dos povos nativos: a retomada da terra e condições propícias à garantia do ethos, ou do orgulho étnico. Para além da questão do crescimento populacional dos povos nativos, que parece ser contínuo e consolidado, a pauta indígena foi ressignificada a partir de reordenações sociais que se deram no período da redemocratização do país e da promulgação da Constituição Brasileira, de 1988, que garante aos indígenas os direitos originários sobre o território que eles ocupam. O capítulo indígena da Constituição teve influência atuação de entidades e lideranças indígenas em atividade no país, como o próprio Ailton Krenak. Foi durante a Assembleia Constituinte, em 1987, que Ailton protagonizou uma das cenas mais marcantes da mesma: em discurso na tribuna, vestido com um terno branco, pintou o rosto com tinta preta para protestar contra o que considerava um retrocesso na luta pelos direitos indígenas naquele momento e pedir respeito aos seus parentes. A nova legislação passou a reconhecer aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 

Performance de Ailton Krenak na Assembleia Constituinte, em 1987. 

Essas reordenações foram aprofundadas nos anos 2000 através de políticas afirmativas junto a diversos segmentos sociais historicamente excluídos da sociedade nacional, especialmente indígenas e negros, que passaram a ter acesso a referências mais positivas da sua identidade étnico-racial e melhores oportunidades educacionais. Destaca-se aqui a implementação da Lei de Cotas de Ingresso nas Universidades (Lei nº 12.711/2012), que promoveu uma ampliação expressiva da presença de indígenas no Ensino Superior. Entre 2009 e 2019, houve um aumento de quase sete vezes do número de estudantes indígenas nas universidades públicas.

Na academia, cada vez mais representantes de etnias indígenas têm se deparado com a possibilidade de autorreflexão e análise crítica sobre o processo de colonização e sobre sua história, além de compartilhar suas próprias perspectivas de mundo nestes importantes espaços sociais. Objetos de estudos antropológicos desde o século 19, esses indígenas começaram, inclusive, nos cursos de pós-graduação,  a desempenhar o papel de sujeitos em relevantes pesquisas no campo do direito, das letras, da educação e da própria antropologia.  Por isso, é possível dizer que, se as frentes de contato, estabelecidas entre a sociedade nacional e os grupos indígenas no século passado se opunham implacavelmente aos modos de vida tradicionais, causando a eliminação dos costumes, valores, ideias ou crenças, na atualidade, é possível perceber transformações. 

“As novas frentes de contato também permitiram que estes povos e suas diversas lideranças entrassem em contato com a lógica da sociedade invasora. Isso proporcionou, contraditoriamente, que essas lideranças se apropriassem desta nova realidade e criassem novas formas de lutas, valorização cultural e expressão por meio de intensas reelaborações culturais e políticas " afirma o antropólogo Porto Borges.

Rebobinamento étnico: as reelaborações culturais sobre as identidade indígenas

Como resposta à violência simbólica, assistimos a um processo de resistência singular, pautado na diferença cultural que o antropólogo americano Marshall Sahlins chama de indigenização da modernidade. “As pessoas não estão resistindo às tecnologias e ‘conveniências’ da modernidade, nem se enrubescem frente às relações capitalistas necessárias para adquiri-las. O que elas de fato procuram é a indigenização da modernidade, seu próprio espaço cultural no esquema global das coisas. Elas adquirem autonomia a partir de sua heteronomia”, afirma o autor. 

Nesse contexto, o ativismo indígena tem conquistado o apoio de novos organismos internacionais e adeptos entre os intelectuais e as classes médias das cidades para suas causas.  Esse movimento estimula o que poderia talvez ser considerado um rebobinamento étnico, visto que, mesmo inseridos na sociedade contemporânea, muitos indígenas estão empenhados na revitalização cultural de suas etnias ou no lobby pela sua valorização, se utilizando, para isso, de tecnologias, mecanismos e linguagens do Ocidente. Por isso, ao se analisar a trajetória indígena na sociedade atual desde a Constituição - sem desconsiderar os trágicos efeitos da disputa por terras que ainda resultam na reincidente violência contra povos indígenas - é pertinente reconhecer a dimensão das transformações em curso no campo intelectual.

Obra do artista Acelino Huni Kuni que integra o Movimento dos Artistas Huni Kuin - MAHKU, A peça integrou a exposição Histórias Indígenas do MASP. Foto: divulgação

 

O que vemos hoje nos movimentos indígenas é que as lideranças reivindicam ativamente não só o direito à terra e à preservação dos  modos de vida dos grupos que vivem em seus territórios originais, mas também espaços de afirmação, ação política e manifestação cultural para os que se deslocaram geograficamente para as sociedades urbanas, ou já nasceram nela, mas que buscam a recuperação da memória indígena, que lhes permite construir sua identidade e garantir seus direitos,

Ainda que vivendo fora dos seus territórios tradicionais, estes indígenas estão movidos  pelo orgulho (que Darcy Ribeiro acreditava que poderia se quebrar fora da aldeia). É esse orgulho que inspira sua vigorosa produção cultural alicerçada em valores ancestrais, um fenômeno cuja dimensão talvez o antropólogo não tenha vislumbrado, mesmo em seus oráculos mais utópicos. Como exemplo, vale citar a atribuição de títulos de doutor honoris causa a lideranças indígenas como Ailton Krenak na UnB (Universidade de Brasília), Almir Suruí na UNIR (Universidade Federal de Rondônia), e Raoni Kayapó na Unemat (Universidade do Estado do Mato Grosso), entre outros.

Nas artes visuais, é notória a repercussão do trabalho do curador e artista Denilson Baniwa, um dos principais nomes da Bienal de São Paulo 2023 e a atuação do Movimento dos Artistas Huni Kuin - MAHKU, que hoje tem obras estampadas diretamente nas nobres paredes do Museu de Arte de São Paulo - MASP. Por fim, a criação, em 2020, da Articulação Brasileira de Indígenas Antropólogos, no interior da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) dá indícios de que novas narrativas devem emergir deste movimento indígena marcado pela pluralidade cultural e de formas de organização social, política e jurídica. Na introdução do emblemático livro organizado por Manuela Cunha,  História dos Índios no Brasil, a autora dizia que “Uma história propriamente indígena ainda está por ser feita”. Talvez os grandes intelectuais de diferentes etnias do país possam contribuir significativamente nessa tarefa. 

Sobre o autor

Camila Fróis

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