Vale do Jequitinhonha: onde o sol brilha mas não se põe

Camila Pinheiro

Norte de Minas Gerais, começo do Sertão. Esse território sem-fim que revela sua amplidão através de um povo também gigante. E assim como os rios de lá, secos e resistentes, seu saber-fazer corre e atravessa o tempo numa tentativa de eterna preservação de suas nascentes.

A memória é viva: mulheres sentadas em roda criando com o barro, matéria-prima-tradição. O ano era 2016, durante meu primeiro trabalho no Vale do Jequitinhonha, colaborando com o Programa de Intercâmbio Cultural da ArteSol. Pergunto à mais calada do grupo se ela tem algum sonho. “Que nossas crianças conheçam o pôr do sol”, me devolve surpreendente. De imediato não entendo. Mas depois de semanas vivendo e sentindo a zona rural de Turmalina, eu compreendo a profundidade de sua resposta. Eram quatro horas da tarde, as crianças brincando e já não se podia mais enxergar o sol, aquele companheiro onipresente que tanto marcava nossos dias. O mesmo sol que tornava o ar tão quente, a poeira tão seca, as rugas do rosto tão fundas, desaparecia sem que pudéssemos nos despedir. O deserto verde de eucaliptos era o culpado: cobria toda região com suas copas enfileiradas que escondiam o astro ainda antes da noite chegar.

A monocultura de eucalipto em larga escala por grandes empresas exportadoras de celulose, madeira e carvão é hoje a mais marcante atividade econômica da região. O Vale do Jequitinhonha é uma mostra profunda dessa atividade, que se multiplicou por enormes extensões de nosso país. Um modelo de concentração da terra e de capital que causa efeitos sociais e ambientais degradantes. Cada pé da espécie demanda aproximadamente 30 litros de água por dia para crescer no ritmo do rendimento econômico esperado. Isso gera um grande déficit hídrico nas regiões onde são cultivados para esse fim exploratório. Portanto, a desertificação do solo, degradação do clima e diminuição da biodiversidade são alguns dos impactos negativos da atividade. E já que grande parte destas propriedades são altamente mecanizadas, o desemprego e processo migratório também são consequências, revelando mais profundamente um vazio populacional, fragilidade nos vínculos sociais e apagamento da cultura local.

Ser artesã nesse contexto é sinal de resistência e salvaguarda. A representatividade do serviço da mulher aumentou dentro de um território que foi marcado durante décadas pelo forte êxodo sazonal masculino. Hoje, sem emprego tampouco qualidade de vida nas grandes cidades, muitos desses homens já retornaram às suas comunidades e é a mulher quem, muitas vezes, possui a maior participação na renda familiar, sendo o artesanato a principal fonte. É nessa realidade que o trabalho desenvolvido pelas artesãs ceramistas do Vale do Jequitinhonha ganha ainda mais valor, e ações inclusivas e inovadoras com o saber artesanal local podem fortalecê-las enquanto cidadãs e criadoras.

Nestes cinco anos, desde meu primeiro trabalho, nunca mais nos desconectamos. Daquela primeira imersão, nasceu o Filtro Cacto, um filtro d’água de barro com design de mandacaru, espécie nativa do Brasil, comum nas regiões semiáridas, que se adapta facilmente às condições onde vive, sobrevivendo às secas. Criação nossa no MÃOS – Movimento de Artesãs e Ofícios com execução de Adriana Xavier, ceramista da Associação Coqueiro Campo, a peça tomou uma proporção maior do que podíamos sonhar, e hoje é propriedade da comunidade. Outras artesãs se inspiraram, criaram suas próprias versões, e o mandacaru floresceu! A peça faz parte do catálogo simbólico dessa região, e além de nosso e-commerce, muitas lojas a comercializam, difundindo ainda mais o artesanato do Vale pelo país e mundo.

O filtro de barro é uma criação genuinamente brasileira. Num país onde água foi e é uma questão de saúde pública, com serviços de encanamento insuficientes, a invenção marcou nossa cultura e transformou nossa qualidade de vida. No Vale do Jequitinhonha, uma região que sofre justamente com a falta de água, data-se há pelo menos 300 anos o ofício do moldar o barro e os Filtros são dos objetos mais tradicionais. Beber água devia ser simples. Desde 2010, água limpa, segura e saneamento básico são Direitos Humanos! Mas essa é uma realidade distante para muitas mulheres brasileiras.

A gente gosta de olhar para a vida por um viés de beleza e esperança. Mas é preciso transcender o objeto: entender a realidade profunda de um território para compreender suas demandas sociais, políticas e comunitárias. Os impactos de nossas (cri)ações ressoam de diferentes formas, tocam várias camadas. Buscamos beneficiar não só as artesãs envolvidas em nosso projeto, mas suas famílias e comunidade. Dilatar não apenas seus bolsos, mas principalmente sua autonomia e autoestima. Diante disso, refletimos outras formas de nos relacionar com as artesãs, para além da geração de renda ou preservação do ofício.

Assim, em 2021, uma nova oportunidade surgiu, o Filtro Caixa. Com a venda de 300 unidades – em edição limitada e numerada - criamos o FIA (Fundo de Investimento Ambiental) para captar recursos para a construção de um poço artesiano, a fim de colaborar com o acesso à água no povoado Campo Buriti, onde vivem as artesãs. Sonhamos trabalhar por seus direitos básicos, e sendo água um deles, queremos facilitar esse acesso através dessa nossa nova iniciativa.

 

 

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OS PEQUENOS NAS MÃOS DOS GRANDES                         

"Há muitos anos passados, com meus próprios olhos vi,

o meu pai ser enganado sem forças pra reagir.
Na minha casinha pobre um nobre cidadão chegou,

cumprimentando meu pai, e assim ele falou:


'Bom dia Sr. Vicente, eu vim aqui te falar.

pra me vender sua terra, uma firma vai chegar.
Ela chegando o senhor vai se desapropriar,

e se não quiser vender, a firma irá tomar'.

 

Meu pai era analfabeto e tinha pouco instrução.

Por medo de ser roubado, caiu nas garras do ladrão. (...)
Quando essa firma chegou,

desmataram toda a mata, e o sossego acabou.


Milhões de pés de pequi, sem outras frutas falar,

foram quebradas e queimadas, sem poder reclamar.
Mil qualidades de bichos que nessa mata havia,

e nesse acaba-mundo, aqueles bichos morria. (...)


E depois que eu cresci, agora não sou criança,

não sei se é desabafo, ou é resto de esperança.
Se diz que o meu vale é pobre, é o 'vale da miséria',

a pobreza aumentou muito mais do que se era!


Enquanto eu existir, uma esperança brilhará,

de ver em nosso vale projetos pra melhorar
E quando for daqui uns tempos meu sonho vou realizar: 

no livro desse Vale outra história estará,"


por Deuzani Gomes dos Santos, artesã-poetisa de Coqueiro Campo,

sobre suas memórias do tempo de aquisição de terras pela cultivadora de eucaliptos.

 

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Sobre o autor

Camila Pinheiro

Camila Pinheiro é uma comunicadora sensível à identidade brasileira. Divide sua atuação em três pilares inter-relacionados: a pesquisa cultural, o desenvolvimento social e a economia criativa. Idealizadora do projeto MÃOS - Movimento de Artesãs e Ofícios, Camila percorre comunidades rurais e urbanas que possuem o artesanato como patrimônio material e imaterial, co-criando possibilidades inclusivas com mulheres artesãs pelo país.
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