Sustentabilidade e conectividade nas criações em cerâmica de Santana do Araçuaí (MG)

Situada no Vale do Jequitinhonha, a terra da mestra Izabel Mendes da Cunha segue mantendo o seu legado, transformando o barro do próprio solo em peças de arte, pelas mãos daqueles que foram seus aprendizes.
Jonathan Lima

 

A reconhecida mestra Izabel Mendes (1924 - 2014), criadora das famosas noivas de cerâmica que hoje caracterizam o Vale do Jequitinhonha, formou uma geração de ceramistas em Araçuaí

O distrito de Santana do Araçuaí (MG) é reconhecido, dentre os apreciadores da cerâmica artística nacional, pela qualidade e expressividade das criações lá desenvolvidas: principalmente bonecas e bonecos de barro. A grande precursora foi a artista Izabel Mendes da Cunha (1924-2014), que nas décadas de 1970 e 1980, já era responsável por um fluxo turístico local de comerciantes e colecionadores do seu trabalho. As primeiras bonecas criadas por ela estavam associadas ao repertório utilitário. Eram chamadas de bonecas moringas e não possuíam membros, pois os corpos tinham a estrutura de grandes garrafas de barro, cujas tampas figuravam as cabeças. No desenvolvimento de sua arte, seguiu pesquisando: adaptou a técnica usada para fazer os braços (do mesmo processo que era aplicado na modelagem dos bicos dos bules), criou um jeito único de fazer os olhos (modelados separadamente e depois aplicados), produziu uma verdadeira ciência na pintura das peças, além de refinar os detalhes decorativos com acessórios muito elaborados.

Izabel Mendes compartilhou generosamente suas técnicas com todos os interessados em aprender. A potencialidade de seu trabalho artístico e educador transformou a realidade econômica dos aprendizes e consolidou uma linguagem estética refletida no uso de matérias-primas naturais extraídas localmente. De forma orgânica, em torno da grande mestra, fundou-se a nova tradição local.

É importante salientar que a produção de cerâmica no Vale do Jequitinhonha, onde está localizada Santana do Araçuaí, já possui longa tradição, que remonta aos povos originários daquele território. Izabel Mendes relatava que muitas das técnicas que usava tinham sido aprendidas observando sua mãe, filha de indígenas, trabalhar. O forno redondo e de topo aberto é uma das heranças presentes, até hoje, no processo de criação das cerâmicas. 

O jovem ceramista João Augusto, que modela desde os 4 anos e desenvolveu uma linguagem autoral. Entre suas peças mais conhecidas estão as bonecas com traços da artista britânica Adele,   Foto: Divulgação

Os ceramistas de Santana do Araçuaí seguem prestando homenagem a grande mestra Izabel, seja na atualização constante da produção ou compartilhando seus conhecimentos com quem os procura. Embora cada artista se aproprie de forma única das técnicas aprendidas, o uso exclusivo de matérias-primas naturais, que incluem as tintas produzidas com o próprio barro, pigmentos extraídos de folhas e até da fuligem dos fogões a lenha (cor preta), faz com que se mantenha uma certa identidade na cerâmica local. 

Neste sentido, para além do fator estético, é interessante notar como as discussões ampliadas sobre sustentabilidade e economia circular, cada vez mais acessadas pelo grande público, lançam luz sobre outros valores agregados à produção ceramista de Santana do Araçuaí: mesmo a lenha usada na queima das peças é proveniente, em grande parte, de madeiras secas encontradas nos arredores da vegetação local. A chamada “lenha fraca”, composta de galhos desidratados, é fundamental para a etapa final, quando as chamas precisam subir ao topo do forno, banhando as peças por inteiro. O barro usado é inteiramente retirado do solo da região e a parte que sobra do processo de modelagem e escultura das peças é depois retrabalhada e reutilizada. A obtenção e refinamento dos materiais usados na construção das cerâmicas integra o processo criativo dos artistas, o que promove uma cultura local voltada para o melhor aproveitamento dos recursos aplicados.
 

Os fornos a lenha utilizados na queima das peças são construídos nos quintais das casas e alimentados, na maioria das vezes, por galhos e madeiras secas encontradas nos arredores da vegetação local. Foto: divulgação. 

É comum que os próprios artistas façam a promoção e venda de seus produtos para o consumidor final ou lojistas especializados. Por este motivo, essas etapas também são consideradas no processo criativo, principalmente em termos de escala. As peças grandes são feitas, geralmente, sob encomenda e a produção cotidiana é mais direcionada para miniaturas e tamanhos médios (de até meio metro), para facilitar seu transporte, ter um valor mais acessível e viabilizar, também, o envio pelos correios. 

O Instagram tem sido uma ferramenta muito utilizada por artistas locais para divulgarem seus trabalhos. Augusto Ribeiro, o mais jovem dos ceramistas, possui muitos seguidores em sua conta profissional (@augustoarte), onde apresenta as mais recentes obras, sempre em busca de novas ideias. Seu universo criativo vai do repertório tradicional (noivas e mães) a peças inspiradas em seus ídolos, como a cantora Adele, de quem é grande admirador. Podemos destacar, também, a peça que elaborou em homenagem a sua avó materna. O artista, que atualmente cursa artes plásticas na Escola Guignard (UEMG), começou sua trajetória cedo, aos quatro anos de idade: sua mãe, Alice Ribeiro (@aliceribeiroarte) o levava nas aulas de cerâmica que tinha com sua irmã, Ana Ribeiro (@anaribeiro_arte), que, por sua vez, havia aprendido pessoalmente com a mestra Izabel Mendes. A família possui uma produção especializada na arte das bonecas.

Colagem com retratos dos artesãos entrevistados em Santana do Araçuaí. Da esquerda para direita e de cima para baixo: Maria Madalena Mendes Braga, Amadeu Mendes Braga, Mercinda Severa Braga, Glória Maria Andrade, Ana Ribeiro, Alice Ribeiro, Augusto Ribeiro, Andréia Andrade, Maria do Carmo Rocha dos Santos (Carminha), Anita Justino da Silva (Santa), Maurina Pereira dos Santos (Teca) e Aneli Brandão Fonte: Tese de Jonathan Lima, 2021.

 

Nesse contexto, Andréia Andrade (@andreia.andrade.arte), neta de Izabel Mendes, tem seu destaque: sua poética está relacionada, principalmente, a memórias pessoais.  Além de formada em artes plásticas pela Escola Guignard (UEMG), teve o privilégio de aprender cotidianamente com a avó materna, sua mãe (Glória Maria Andrade), seu pai (João Pereira de Andrade) e tios (Maria Madalena Mendes Braga e Amadeu Mendes Braga), todos mestres ceramistas. A artista apresenta as novas criações no Instagram e, eventualmente, se faz presente em lives, falando do seu trabalho e compartilhando as lembranças da avó, sua maior inspiração.

 

Boneca de cerâmica esculpida pela artista Andreia de Andrade em agradecimento à sua avó, dona Izabel Mendes, pelos ensinamentos transmitidos

O uso das redes sociais tem propiciado perfis diversificados de clientes e encomendas aos artistas, engendrando outros processos criativos. Um exemplo disso são os pedidos que Alice Ribeiro e seu filho Augusto Ribeiro, já citados, recebem para produzir bonecos inspirados em fotos reais. É válido ressaltar, ainda, que a apropriação destes novos canais de divulgação viabiliza meios para acompanhar e admirar os trabalhos destes artistas, em pleno vigor de suas criações.

Saiba Mais

Acesse a tese de Jonathan lima aqui:
Artesãos-Artistas contemporâneos: D. Izabel Mendes da Cunha e o legado aos mestres ceramistas de Santana do Araçuaí (MG)


 

 

 

Sobre o autor

Jonathan Lima

Jonathan Lima é doutor em artes pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), onde defendeu a tese intitulada “Artesãos-Artistas contemporâneos: D. Izabel Mendes da Cunha e o legado aos mestres ceramistas de Santana do Araçuaí (MG)”. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/93/93131/tde-02082021-160333/pt-br.php
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