O aconchego da lã, a fibra afetiva dos pampas

Iniciativas de artesãos e designers do sul do país garantem a salvaguarda de técnicas milenares de beneficiamento da lã reinventada em peças que envolvem o corpo e a casa com um design fresco e contemporâneo
Helena Kussik

Atualmente, o rebanho nacional de ovinos gira em torno de 18,2 milhões de cabeças. Mais de 90% está no Rio Grande do Sul. Foto: Lucas Cuervo

Do aconchego à resistência, a lã é uma das fibras mais versáteis e nobres que conhecemos. Farta nos Pampas do sul do país, a matéria-prima se entrelaça à história de muitos artesãos que preservam o conhecimento necessário para sua cultura, como o beneficiamento, a fiação e a inovação no seu uso há gerações. 

Crescer no sul do país me fez guardar na memória primeira - que é a do chão, do cheiro e da pele - o gosto do frio, o frio que acinzenta o verde e congela os pingos d'água antes mesmo de pingarem, e é teimosamente afastado com o fogo da lenha,  o quente da sopa e o macio da lã. 

A lã é presença fundamental na vida campeira sulista por suas características geográficas e climáticas, em especial no estado do Rio Grande do Sul, responsável hoje por 98% da produção da lã nacional. 

O Brasil, extenso em território, é extremamente diverso em expressões culturais relacionadas aos seus seis biomas. O Pampa, também conhecido como Campos do Sul, é o único deles presente em apenas um estado, ocupando pouco mais da metade do território gaúcho e espraiando-se pelos países vizinhos, Uruguai e Argentina. Ali, a larga planície de vegetação baixa, como um tipo de savana, mostrou-se ideal para a criação de rebanhos, sendo essa atividade estreitamente atrelada ao desenvolvimento econômico da região. 


Fios tingdos em propriedade em Dom Pedrito (RS). Foto: Camila Pinheiro

Por muito tempo, o cuidado com o rebanho, a tosquia, a limpeza, a carda, a fiação e a tecelagem da lã eram parte das atividades produtivas rurais na maioria das fazendas e sítios da região. A fibra que era extraída nesse processo servia tanto para o uso doméstico, quanto para a comercialização local. Com a mecanização desses processos, a dinâmica relacionada ao beneficiamento da lã foi se transformando. Ainda assim, a cultura da lã é parte constituinte da cultura e da produção artesanal do sul.

Quando falamos de artesanato de tradição ou de raiz cultural, nos referimos ao artesanato que está intimamente ligado aos aspectos geográficos, históricos e afetivos que envolvem sua produção. Por isso, localizar o Pampa no mapa, sentir o ar frio e ouvir seus rebanhos é importante para entender como termos como micragem, tosquia, bacheiros/xergões e pelegos entram no nosso vocabulário e imaginário. Cada raça de ovelha - como Corredali, Ideal e Merino - produz um tipo de lã, que se diferencia pela espessura do fio, a chamada micragem. O cálculo parece simples: quanto mais fino o fio, mais baixa a micragem e mais macia e brilhante é a lã, que é utilizada para se tricotar e tecer à mão as mantas, tapetes e cobertores – itens indispensáveis para se proteger do inverno rigoroso da região.

Tricô gigante da Associação Ladrilã. Foto: Lucas Cuervo

A lã que vai bem o ano todo na casa e no corpo

Quem transita bem por essas terras e por esse universo criativo é a artista gaúcha Inês Schertel, que há quase 10 anos deixou a capital paulista - onde viveu parte de sua vida - para cuidar de um rebanho de ovelhas em São Francisco de Paula (RS). Para Ines, além da micragem, a qualidade da lã varia também de acordo com a criação da ovelha, com os cuidados na tosquia, que é a tosa anual, e com o próprio beneficiamento da fibra, que pode deixá-la mais ou menos macia.

"A lã é incansável. Quanto mais você trabalha com ela, mais ela dá", sentencia a designer

A partir de um processo manual, Inês desenvolve peças em feltro rústico utilizando uma técnica milenar originada entre povos nômades da Ásia Central. O destaque do seu trabalho está na criação de produtos de lã mais “frescos e contemporâneos” do que os tradicionalmente usados na região. São cestos, luminárias, bancos e objetos de decoração que podem ser utilizados no cotidiano das regiões mais tropicais do país.

A artista gaúcha Ines Schertel que beneficia manualmente a lã e trabalha com o processo da feltragem pra criar objetos de design e decoração. Foto: Divulgação

Hoje, poucos produtores mantêm o processo inteiramente manual como Inês, mas a memória desse ritual permanece conectada ao presente por laços afetivos e por projetos afirmativos como o “Lãs do RS”. Idealizada pela gestora cultural Letícia Costa de Oliveira, a iniciativa é focada no fomento à educação patrimonial, na pesquisa, no registro e na reativação de conhecimentos tradicionais. Esse propósito conecta uma extensa rede de criadores de ovinos, artesãos, designers, pesquisadores e gestores culturais que se fortalecem em trocas presenciais e online. 

Uma das ações que foram fomentadas nesse contexto é o “Festival Lãs do RS - Fios da Meada”, que projeta a lã natural como patrimônio do Rio Grande do Sul. A primeira edição do evento aconteceu em formato online em 2021 e está disponível no canal do Youtube Lãs do RS. Seja através de oficinas de repasse de técnicas de beneficiamento, concursos, exposições, ou grupos de articulação online, como o Lãs do RS (que conecta mais de 1.500 seguidores no Facebook), a iniciativa se fortalece a cada ano. 

Foto: Lucas Cuervo

Além de projetos específicos ligados à cultura da lã, as iniciativas de salvaguarda do artesanato brasileiro também valorizam o trabalho de grupos que atuam com diferentes técnicas têxteis ligadas à lã. A Rede Nacional do Artesanato Cultural Brasileiro (Rede Artesol), por exemplo, incluiu três associações que atuam com possibilidades intermináveis de transformar a lã em acessórios, objetos de decoração e design, através do diálogo entre a tradição e a inovação. É o caso de associações como  Pampa Caverá, Grupo Araucária e Ladrilã, que, além de peças tradicionais como mantas e cachecóis, também desenvolvem objetos mais leves e lúdicos, como brinquedos, cestos, banquinhos para a decoração, bonecos, bolas de feltro colorido e lenços com detalhes inusitados e divertidos que podem ser usados em qualquer estação do ano. 

Foto: Brinquedos de feltragem da ladrilã. Foto: Lucas Cuervo


Segundo Tânia Furtado, presidente da Associação Ladrilã, é preciso inovar sempre na criação com a lã para que os fios da memória sigam tecendo futuros possíveis.Uma das apostas das artesãs é buscar apresentar todo o potencial da lã, promovendo suas características de maciez e aconchego, como um abraço para todo Brasil. Seja trabalhando técnicas como feltragem, tecelagem, tricô ou crochê, a lã mostra-se única e encantadora, envolvendo o corpo em peças da moda ou a casa, no melhor do design e decoração nacional. 

A lã como patrimônio

Outra iniciativa importante para a valorização da lã é o processo de reconhecimento dos “Saberes e Fazeres da Lã do Rio Grande do Sul” - que podem ser tombados como Patrimônio Brasileiro. Confira aqui a petição pública do projeto.


 

 

Sobre o autor

Helena Kussik

Helena Kussik é mestre em Antropologia e atua como designer e pesquisadora. Atualmente se dedica a projetos de mapeamento de comunidades artesãs e articulação entre setores e agentes integrados na cadeia do artesanato nacional.
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