Caminhos do Brasil: uma expedição da Artesol pela Amazônia real

Em meio a um impressionante emaranhado de mata, rios e igarapés, um time de 16 pessoas entre gestores, voluntários e apoiadores da Artesol passou uma semana navegando entre as principais comunidades de artesãos do Alto Rio Negro, uma das regiões mais remotas da maior floresta tropical do mundo
Sonia Quintella

Numa tarde quente em Manaus, cada um dos integrantes da nossa expedição foi chegando curioso, com a sensação comum de que iríamos viver vários dias de aventura, mas também de um mergulho profundo em um mundo de conhecimentos novos. Já na próxima madrugada, estávamos todos prontos para adentrar um território imenso e muito intrigante, que guarda várias terras indígenas protegidas no extremo norte da Amazônia: a “Cabeça do Cachorro”.

Chegada do grupo no aeroporto de Manaus, ponto de partida de uma aventura surpreendente pelo Rio Negro,

A região que abrange a bacia do Alto Rio Negro, onde a linha fronteiriça entre o Brasil e a Colômbia faz um desenho que lembra uma cabeça de cachorro, é habitada tradicionalmente há pelo menos dois mil anos por etnias nativas. Nossa proposta ali era conhecer de perto a realidade de grupos de artesãos apoiados pela Rede Artesol. Acreditamos que conhecer e conviver é uma forma de valorizar os modos de vida, a cultura e o ritmo próprio de comunidades tradicionais que são responsáveis por proteger a maior biodiversidade do mundo.

Nesse contexto, vale lembrar que, além de um importante meio de sustento, o artesanato é uma atividade sustentável e uma importante expressão dos saberes e da cultura popular da região que mantém esses povos conectados às suas raízes e sua história ancestral.  No avião para São Gabriel da Cachoeira, a 800 km noroeste de Manaus, só avistamos um enorme e denso emaranhado de floresta e rios. A chegada é intrigante. No meio do nada, pousa um avião da Azul. Estávamos a 4.600 km da cidade de São Paulo, em um município onde 95% da população tem ascendência indígena.

Para vistar todas as comunidades de artesãos, viajamos a bordo do Barco Untamed, que oferece uma experiência confortável, exclusiva e marcante no coração da Amazônia. 

Paramos em frente a uma grande maloca, que é sede da FOIRN, associação sem fins lucrativos que apoia 750 comunidades, onde habitam mais de 35 mil indígenas, de 23 diferentes etnias, como Tukano, Yanomami, Baré, Baniwa, entre outras. Na loja Wariró, criada pela FOIRN, todos se encantaram com a beleza das peças artesanais expostas: um mundo de cestas, cerâmicas, peneiras, tapetes, além de luminárias e outros produtos criados especialmente para a comercialização para turistas. Além do primor estético, essas peças são criadas a partir de saberes milenares que são patrimônio cultural material e imaterial brasileiro e são essenciais para a sustentabilidade econômica das comunidades locais. Queríamos levar tudo pra casa!

Depois de termos uma pequena amostra do que nos esperaria pela frente na Wariró, partimos para a próxima aventura: chegar ao barco Untamed, que seria nossa casa flutuante pelos próximos dias. Depois de quilômetros de caminhada, a entrada é excitante. A embarcação é grande e aconchegante, oferecendo uma experiência única no meio da Cabeça do Cachorro, muito longe de tudo que tínhamos referência de hospedagem e conforto até então. A tripulação do barco somava 12 pessoas, incluindo um capitão, prático, cozinheira, ajudante, arrumadeira e mecânicos que ajudaram a tornar a viagem inesquecível. 

Comunidade Cartucho, no município de Santa Isabel do Rio Negro (AM). 

Nossa primeira parada foi na comunidade do Cartuxo. Lá, fomos recebidos por Vamberto Rodrigues, um líder super bem articulado, claramente envolvido de coração com o desenvolvimento local. Além dele, também fomos surpreendidos pela hospitalidade das crianças mais lindas, sorridentes e de olhos mais profundos que já vi. Elas cantaram, dançaram e posaram para as fotos com uma naturalidade encantadora. Nenhuma se intimidou. Interagiam conosco como se já nos conhecessem há anos.

Vivem nesta comunidade cerca de 40 famílias majoritariamente da etnia Baré, com raiz milenar fincada na agricultura de subsistência. A intimidade das crianças com as visitas vem da tradição em bem receber. A principal renda local vem do turismo comunitário, que foi desenvolvido pela Associação das Comunidades Ribeirinhas – ACIR em parceria com as ONGs Garupa, ISA e FOIRN. Nesta experiência, os visitantes ficam hospedados em alojamentos coletivos, dormem em redes e vivenciam o dia a dia da comunidade, conhecendo atrativos como trilhas, banhos no rio, produção de artesanato, canoagem e – principalmente – muitas rodas de conversas sobre a cultura local.

Porto de Barcelos (AM), localizado na região conhecida como médio rio Negro, no Noroeste Amazônico. Foto: Felipe Abreu

Artesanato: expressão dos saberes e da cultura ancestral da Amazônia

Um dos nossos principais interesses ali era conhecer mais sobre a dinâmica da produção artesanal. Na região de Santa Isabel, as peças são feitas principalmente de fibra de arumã colhidas às margens do Rio Negro. São vários tipos de vasos, cestas, esteiras, peneiras e tipitis (secador de mandioca) tramados manualmente e tingidos com pigmentos naturais. A diversidade dos artefatos criados nas comunidades indígenas brasileiras é resultado da experimentação de formas, elementos naturais e técnicas artesanais, como o trançado e a pintura, que conferem à arte indígena um caráter exclusivo e cheio de simbolismo.

Peças de fibra de arumã e piaçava criadas por artesãos de São Gabriel da Cachoeira (AM). Fotos: Felipe Abreu

Além de conhecer a produção artesanal, fomos convidados também a experimentar pratos locais feitos com a bacaba, fruto de uma palmeira nativa amazônica, cujo gosto achamos um pouco duvidoso. Visitarmos também a escola local, super limpa e organizada, e partimos para o barco com um sentimento enorme de que a felicidade não está nas coisas materiais, mas, sim, na liberdade de viver sem amarras num território cheio de riquezas naturais e culturais.

Após desfrutarmos de praias e banhos magníficos no Rio Negro, navegamos por horas admirando uma paisagem de perder o fôlego por sua magnitude, calmaria e importância para o mundo.

Chegamos a Barcelos de madrugada e já cedinho saímos do barco para explorar a cidade que já foi a capital amazônica. Fica lá a sede da Associação AMARN, onde fomos recebidas pela Dinalva, hoje líder desta associação que representa artesãos indígenas de diversas comunidades da região. Os produtos são maravilhosos, sendo a maioria produzido com a fibra de tucum e arumã: porta-joias, cestos, potes, bolsas e biojoias. Essa associação faz um trabalho valioso de articulação com indígenas que vivem em aldeias remotas para que eles consigam escoar sua produção.

Artesol, conectando os artesãos da Amazônia ao mundo

Lá, ouvimos muitos agradecimentos pelo trabalho da Artesol na região. Os depoimentos foram muito gratificantes e nos deram um grande orgulho e sensação de dever cumprido e a cumprir diariamente.  Há 5 anos, lançamos a Rede Artesol, que mapeia, divulga e conecta mais de 300 grupos de artesãos do Brasil a mais de 70 lojistas e milhões de consumidores finais em o todo o mundo. Além de criar a maior plataforma de artesanato do país, quiçá do mundo, fazemos a ponte entre estes artesãos e o público com a produção de catálogos, capacitação para a gestão de negócios, mediação e mentoria para associações através de um time comprometido em promover o desenvolvimento dos artesãos brasileiros.   

 Visita na sede da FOIRN, associação sem fins lucrativos que apoia 750 comunidades, onde habitam mais de 35 mil indígenas. 

Devido ao isolamento das aldeias, um dos fatores mais complexos na comercialização do artesanato indígena é a comunicação dos artesãos com o público e a logística de transporte e distribuição da produção. Por isso, a inserção de associações indígenas e lojas especializadas nesse tipo de artesanato na Rede Artesol é uma estratégia para facilitar o acesso das aldeias ao mercado e fortalecer uma cadeia de comércio justo com pagamento de valores dignos pelo artesanato. Dessa forma, é possível estimular a produção de diferentes etnias, para que sua cultura se mantenha viva.

O resultado da visita foi esplendoroso, pelas vendas e, também, pelas trocas de conhecimento sobre nossa realidade nas grandes cidades e a deles, que vivem espalhados em minúsculas ilhas do Rio Negro. A próxima parada foi no Parque Nacional de Jaú, onde o ICMBio mantém um posto flutuante de fiscalização no início do Rio Jaú. Neste espaço, conhecemos um dos Programas Quelônios da Amazônia, ação de pesquisa para preservação e conservação das tartarugas. Esse parque possui uma paisagem bem diversificada, abrangendo floresta em terra firme, planícies, igarapés e vários rios, incluindo o Jaú e o Carabinani. E foi neste rio que vivemos momentos mágicos ao som da Cachoeira de Carabinani com diversas quedas e muitas pedras formando um conjunto eletrizante de correnteza, pedras e floresta. Ao todo, o parque abriga cerca de 400 espécies de plantas e 250 espécies de peixes. 

O visual inspirador do RIo Negro, maior afluente da margem esquerda do rio Amazonas. Foto: Felipe Abreu

Maior arquipélago fluvial do mundo

A próxima parada foi em Novo Airão, que dá acesso ao Parque Nacional de Anavilhanas com suas 400 ilhas, o maior arquipélago fluvial do mundo. Fomos direto conhecer a Fundação Almerinda Malaquias - FAM, que idealizou um centro de educação ambiental para a população, onde as crianças aprendem a produção do artesanato em marchetaria durante o contraturno das escolas. Nos últimos anos, surgiu o projeto de construção de novas escolas nas comunidades próximas, iniciativa de sucesso

Conhecer a Nov’Arte foi, de novo, um grande presente para nós, da Artesol, pois este foi mais um grupo que progrediu exponencialmente a partir da inserção na Rede Artesol nos últimos anos. O trabalho da marchetaria com madeiras de diferentes cores desenvolvido ali é magnífico. O coração quase explode de tanta beleza e qualidade dos produtos logo ao entrar na loja. Não resistimos e compramos quase tudo que estava disponível, pela admiração ao trabalho, mas, também, desejo de apoiar os artesãos. 



De lá, seguimos para a Associação de Nova Airão, que produz peças decorativas com a fibra de arumã. Todo tingimento é feito com a resina da flora local. Os pigmentos vermelho e preto vêm do uso da goiaba-de-anta, do urucum e da ingá xixica.

Partimos, então, pelo arquipélago de Anavilhanas até a próxima parada: Tumbiras. Esta Reserva de Desenvolvimento Sustentável - RDS é um exemplo de como uma boa gestão de projetos pode gerar resultados positivos tanto para a proteção da biodiversidade, como para a inclusão socioprodutiva dos ribeirinhos. Hoje, a comunidade recebe recursos da Fundação Amazônia Sustentável – FAS, que investe no turismo comunitário em um modelo em que os moradores abrem suas casas para visitantes de todo o Brasil e do exterior. Entre as atrações locais estão trilhas, canoagem, artesanato e gastronomia regional. A Pousada do Garrido também recebe inúmeros visitantes ao mesmo tempo.

A FAS apoia os moradores com capacitação empreendedora, apoio à comercialização, crédito e, principalmente, investimento em infraestrutura. O líder, Roberto, vem de uma família de cortadores ilegais de árvores, mas, hoje, se transformou num generoso e entusiasmado gestor obstinado em trabalhar pela sustentabilidade local.

À esquerda, visita na AMARN. Na foto, a artesã Dinalva e as visitantes Bia Ceschin, Silvia Bárbara, Vívian Campos, Fatima Marques, Regina Opice e Ana Lucia Barbosa. À direita, Ana Barbosa na Associação de Novo Airão. 

Foi nessa comunidade que entramos pela primeira vez na mata fechada. Liderados pelo Matias e pelo Chiquinho, adentramos a floresta.  sem medo e super curiosos. As explicações sobre a utilidade das plantas e sobre sobrevivência na floresta foram tão  profundas que desaceleramos o ritmo para absorver tudo e andamos pouco menos de mil metros em duas horas. A sensação de estar no meio da mata é inexplicável. De repente, a gente está cercado de árvores gigantes que, juntas, cobrem todo nosso céu. Pisar nesta terra, maior floresta do mundo, com a segurança da companhia destes dois líderes, gera uma emoção sem limites. Nos sentimos completamente encantados com tanta abundância e tanta riqueza e lembramos que nós somos parte deste mesmo país que teve o privilégio de ganhar este presente verde cercado pela maior rede hidrográfica do mundo. 

Em seguida, vimos de perto o tão famoso boto rosa. Ele existe de verdade e é lindo e irradiante de perto. Terminamos os passeios com uma volta longa de canoa motorizada por igarapés onde fomos supreendidos por um espetáculo de macacos da espécie micos-de-cheiro, invasores – sem falar de peixes voadores. Todos nós nos divertimos a beça. 

Aldeia indígena Dessana Tukana habitava, na fronteira entre Brasil, Venezuela e Colômbia. 

Nossa noite terminou com um luau charmoserrimo regado a inúmeras gargalhadas e conversas deliciosas de um grupo acostumado com as comodidades da cidade grande que caiu de paraquedas no meio da floresta, onde viveu horas e horas sem internet, sobreviveu lindamente e se tornou um coletivo heterogêneo, que, em pouco tempo, se uniu numa amizade que, com certeza, renderá ainda muitos e muitos momentos cheios de energia e muito amor a ser compartilhado.

Participaram da expedição: Ana Lúcia  Barbosa, Bia Ceschin, Célia Parnes, Cristina Rappa, Eleazar de Carvalho Filho, Fábio Barbosa, Fatima Marques, José Roberto Ópice, Marcelo Barbará, Pedro Campos, Regina Ópice, Sérgio Rocha, Silvia Barbará, Sonia Quintella de Carvalho, Valéria e Vivian Campos.

 

 

 

 

Sobre o autor

Sonia Quintella

Sonia Quintella é presidente da ONG Artesol, apaixonada pelo Brasil e seus territórios criativos, suas paisagens naturais e sua cultura popular. Através da iniciativa Caminhos do Brasil tem levado grupos para participar de imersões em em núcleos de artesãos brasileiros para
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