A juventude que quer viver um futuro diferente na Floresta Amazônica

Muitas comunidades de artesãos têm vivido o desafio geracional marcado pela pouca adesão dos jovens às atividades tradicionais. Entre os fatores que influenciam nesse cenário está a insuficiente presença de políticas públicas que sejam capazes de valorizar a zona rural e oferecer condições de construção de uma vida com qualidade. Em Acrelândia, no extremo norte do Brasil, uma iniciativa focada no manejo sustentável de recursos da floresta mobilizou um grupo de jovens que hoje têm orgulho de atuar em uma produção artesanal arrojada que transformou a realidade local em oportunidade.
Júlio Ledo

 

O consultor da Artesol Júlio Ledo e os jovens de Acrelândia que atuam na gestão e produção do artesenato do Assentamento Porto Dias. Agachada á esquerda na foto, Daiane Nascimento voltou de Rio Branco para Acrelândia porque sonhava em conseguir trabalhar em sua terra de origem. Ela estimulou outros jovens a se juntarem à Associação para que o negócios pudesse se concretizar. 


O Acre existe. È lindo. No centro da capital Rio Branco ainda é possível ouvir o canto dos pássaros ao amanhecer. Mais do que uma trilha sonora peculiar, o café da manhã tem um menu típico do estado que recebe o curioso nome de Baixaria - é uma delícia.

 Além de paisagens e sabores e tropicais, você vai encontrar um povo acolhedor em cada cantinho dessas terras que foram incorporadas ao Brasil só no início do século XX – antes disso, a região pertencia à Bolívia. Sorte ao chegar ali é constatar que o Acre existe e é nosso!

Ainda estava escuro quando, na porta do hotel onde estava hospedado na capital, o carro com a equipe técnica da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA), chegou. Nosso destino era a sede do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Porto Dias, no município de Acrelândia.  Ali vive um grupo de artesãos que trabalha com os resíduos do manejo florestal comunitário. Diferentemente da maioria dos núcleos de artesãos do Brasil, esse coletivo é formado por jovens e esse era o fato que mais me intrigava quando viajava pra lá.

Peça entalhada na Associação Porto Dias a partir de madeiras colhidas na floresta. Foto: Júlio Ledo

Ao deixarmos a estrada asfaltada, entramos num ramal, como são chamadas no Acre as pequenas e longas estradas de terra batida, que muitas vezes se transformam em enormes atoleiros de barro. Logo no início do ramal, quatro pessoas pediram carona e o motorista parou e afirmou que o carro estava cheio. Eu olhei, era uma senhora com uma criança e um jovem casal. Não perdi tempo, fui para parte aberta da camionete com os dois jovens e a senhora com a criança ocuparam meu lugar dentro da cabine. Ali, a viagem efetivamente começou. O carro avançava pelo caminho repleto de árvores enormes, incluindo muitas castanheiras. Enquanto o vento batia em meu rosto, minha alegria e sensação de liberdade só aumentava.

Meus jovens companheiros na etapa dessa viagem foram me contando sobre suas vidas, como se sentiam sendo artesãos e relatavam “causos” como os das onças que às vezes surgem na mata, ou do caminho que desaparece após as tempestades (eu já havia tido uma experiência dessas de outra vez que estive no Acre).

Depois de muita contemplação do espetacular cenário natural e muitas sacolejadas, chegamos ao assentamento Porto Dias. Algumas casas de madeira, castanheiras ao redor, um pequeno rio, que divide o Brasil da Bolívia e pessoas sorridentes foram minhas primeiras visões.

Já na chegada caminhamos entre as casas dos moradores até o local de trabalho da associação. Há ali um galpão muito organizado com um espaço de produção no centro. Em volta, havia a exibição das lindas gamelas produzidas pelos jovens. Cada peça é única e revela o desenho e as cores das árvores que caem de forma natural, numa grande área de manejo sustentável. Eu pegava as peças e tinha a sensação de que abraçava árvores que já haviam cumprido seu tempo naquelas terras e agora levariam a magia, grandeza e beleza para tantos outros locais.

"Na hora que a gente cata na mata, ela já vem no formato da natureza, cada peça é única, nunca vai ser uma igual. Umas mais largas outras mais estreitas, corações, coisa que te dão um pensamento mais forte.", conta a artesã Daiane Nascimento.

Juventude, identidade e geração de renda

Os jovens artseãos fotografados com o resultado do trabalho. Eles aprenderam a técnica de entalhar a madeira com o reconhecido artesão Nonato Montefusco. Foto: Júlio Ledo.

Os jovens que estavam presentes, ao mostrar os seus trabalhos artesanais tinham um brilho nos olhos, uma fala baixinha e cheia de orgulho e uma alegria espontânea.

A história da Associação começou quando a Secretaria de Estado de Meio Ambiente, através de diferentes parcerias, conseguiu viabilizar a realização de um curso de artesanato a partir do manejo sustentável dos resíduos florestais da região. O professor do curso, o artesão Nonato Montefusco é uma grande referência do Acre e do Brasil por sua excelência no entalhe de madeira nativa.

A ideia é aproveitar troncos caídos para serem entalhados em forma de fruteiras e gamelas. Nenhuma árvore é derrubada.  A madeira utilizada é coletada na mata de árvores derrubadas por raios, por manejo florestal ou proveniente de reaproveitamento. Quando o consumidor compra a peça, está valorizando esse trabalho de manejo sustentável da floresta e geração de renda para os seus moradores.

A prova da eficência do trabalho coletivo na gestão da associação, produção e comercialização das peças é a grande demanda pelo trabalho da Associação. Foto: Júlio Ledo. 

Além das aulas gratuitas, os alunos receberam uma bolsa de apoio e um aporte financeiro para montar as instalações da oficina e comprar os equipamentos de trabalho. Depois de alguns meses, porém, faltou recurso para bolsa e 19 dos 20 jovens deixaram o curso – eles dependiam da bolsa inclusive para se deslocarem em grandes distâncias entre suas casas e o local do curso. A única aluna que continuou foi justamente a que, quase não consegui sua vaga: Daiane Nascimento. Quando tentou se inscrever, já não havia vagas porque ela estava em Rio Branco quando soube e as inscrições tinham sido fechadas quando ela chegou a Porto Dias. Ela só conseguiu participar por conta de uma desistência.

Aos nove anos de idade, Daiane foi levada pelos seus pais para morar e estudar em Rio Branco porque eles acreditavam que assim ela teria melhores oportunidades de estudo e trabalho. Foram anos de saudade para a menina que virou adolescente longe de sua terra e de seus amores. Seu maior sonho era um dia conseguir voltar a morar em Porto Dias, junto a seus pais e amigos e poder caminhar com seus pés descalços em sua terra. Ela, porém, nunca havia imaginado que esse seu grande sonho seria realizado através do artesanato.

Quando os outros jovens desistiram do curso ela sentiu um medo enorme do projeto acabar e ter de voltar a morar na capital. Por conta própria, começou a mobilizar outros jovens até que conseguiu mais nove alunos para que o curso tivesse continuidade. Atualmente, os oito jovens que atuam na Associação têm suas vidas aos poucos transformadas a cada gamela que é comercializada.

Durante minha visita aos jovens de Porto Dias, em um determinado momento, após sairmos das margens do rio que separa o Brasil da Bolívia, sentamos numa mesa. Como forma de agradecimento por estar recebendo de presente a história de superação desses jovens através do artesanato, resolvi contar um pouco minha vida. Compartilhei alguns episódios desde o tempo que era jovem e sonhava conhecer pessoas, suas terras distantes e suas tramas. Foi uma conversa cheia de sonhos e sentimentos.

Em lágrimas Daiane Nascimento dividiu conosco um pouco dos seus sonhos particulares: “o artesanato trouxe minha vida de volta. Eu, que sonhava em voltar a morar em Porto Dias, consegui estar de volta em minha terra graças a esse trabalho que também me levou a lugares que eu nunca, nunquinha imaginava conhecer. Quando cheguei a São Paulo, em uma grande feira de artesanato, e vi as pessoas dizendo que nosso trabalho era lindo, eu tive a certeza que havia conseguido e que deveria seguir e incentivar mais jovens a serem artesãos também. O artesanato me proporcionou oportunidades e sentimentos que quero que mais jovens sintam.

Há mais de dez anos eu atuo junto a negócios de impacto e há aproximadamente 20 anos eu iniciei meu trabalho para fortalecer o desenvolvimento territorial e a salvaguarda dos saberes locais e do artesanato. Um dos grandes desafios na salvaguarda do artesanato de tradição e na sustentabilidade dos artesãos é a inserção de jovens na produção e na gestão do artesanato. Em alguns grupos que atuei junto a Artesol, tivemos êxito ao inserir jovens na gestão artesanal, mas o envolvimento deles na produção sempre algo desfiador.

As tábuas criadas pelos artesãos da Associação com diferentes tonalidades e texturas revelam as características da árvores amazônicas. Foto: Júlio Ledo

O grupo de Porto Dias é grande case de sucesso pois nos mostra que o artesanato, aliado à tecnologia, ao design, à visão estratégica do mercado e a um modelo de gestão eficiente pode criar novas possibilidades para jovens junto às suas famílias e seus territórios de origem.

“O artesanato é sinônimo de vida melhor para nós jovens também.  Eu me sinto muito feliz, orgulhosa, muito bem mesmo, sendo artesã. Hoje eu vejo valor numa coisa que nem de longe parecia ser um tesouro. A gente aproveita com todo respeito o que a natureza nos oferece e ganhamos o poder ficar e nos desenvolver em nossa própria terra” (Daiane Nascimento)

O Acre existe, é lindo e é a terra da Daiane Nascimento.

 

Sobre o autor

Júlio Ledo

Júlio Lêdo é o especialista em sair pra ver e facilitar trocas. Largou o exercício da engenharia há mais de 20 anos para se dedicar ao estudo das interconexões presentes no mundo real. Se considera um educador por essência, ama fotografa, música, ouvir e contar histórias e claro, sair pra ver. Nos últimos anos, uma das suas missões tem sido capacitar grupos de artesãos que integram a Rede Artesol.
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