A contribuição de Janete Costa

O artigo de Adélia Borges saúda o lançamento do livro Janete Costa - Arquitetura, Design e Arte Popular em março de 2021 e aborda a ligação da pernambucana com o artesanato e a arte popular, e sua relação com os criadores, as formas que encontrou para valorizá-los e as antológicas exposições que realizou ou montou.
Adélia Borges

 

O livro  lançado pela Cepe - Companhia Editora de Pernambuco em março de 2021 traz em 161 páginas a história e contribuição da arquiteta. 

Já não era sem tempo! Finalmente Janete Costa ganha um livro que faz um apanhado da sua carreira e de sua contribuição para a cultura brasileira. Janete Costa - Arquitetura, Design e Arte Popular, lançado pela Cepe - Companhia Editora de Pernambuco em março de 2021, traz em 161 páginas um panorama sobre o seu percurso, em dezenas de fotos e em textos assinados por Júlio Cavani, Lauro Cavalcanti, Marcelo Rosenbaum, Marcus Lontra e por mim.

É difícil resumir as várias contribuições de Janete. Como este texto é para este portal da ArteSol, vou me concentrar em três pontos, todos girando em torno de sua ligação com o artesanato e a arte popular: primeiro, a relação estabelecida por ela com os criadores; segundo, as formas que encontrou para valorizá-los dentro de sua atuação como arquiteta e designer de interiores e, por fim, a ação de valorização via exposições, em que se insere a sua colaboração com o ArteSol. O arco temporal abrangido dessa faceta de seu percurso vai do início da década de 1960, quando concebeu um museu de arte popular para ocupar o Forte dos Reis Magos, em Natal, Rio Grande do Norte, até 2008, quando faleceu, deixando uma legião de admiradores e órfãos, entre os quais me incluo.

 

Em 2008, ano de seu falecimento, já debilitada, Janete realizou a exposição Uma vida, no Museu do Estado de Pernambuco, com a coleção que ela e o marido Acácio Gil Borsoi constituíram.
Foto Adélia Borges

Janete tinha uma relação muito próxima com artesãos e artistas. Visitava-os com frequência, levava outras pessoas nessas visitas e sempre procurava formas de promover aqueles em cujo talento apostava. Testemunhei alguns desses encontros. Nunca era impositiva. Exercia uma espécie de escuta sensível e ao mesmo tempo trazia para a conversa seus pontos de vista, ampliando os repertórios das pessoas envolvidas. Era um diálogo de igual para igual. Sugeria muitas vezes pequenas alterações nos objetos artesanais que fariam uma grande diferença no resultado final. Com frequência a sua ação era de deslocamento e ressignificação – um cesto de fibra vegetal usado na roça se transmutava em luminária; uma coberta se tornava um jogo americano. Cunhou uma expressão que sintetizava sua postura: “Interferir sem ferir”. Ouvi relatos emocionados de criadores sobre a importância que ela teve em suas vidas. Era totalmente obcecada com a ideia de geração de renda, agindo sempre com um sentido de urgência que a constatação da pobreza de parcelas grandes da população lhe impulsionava.

Janete Costa iniciou o curso de Arquitetura na Universidade Federal de Pernambuco em 1952 e só veio a se formar nove anos depois, na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, para onde se mudou. Desde o início do curso atuou no projeto de interiores de residências, com centenas de projetos em vários estados do Nordeste e também no Rio de Janeiro. Foi nas pesquisas para o museu no Forte dos Reis Magos que ela constatou a beleza e a riqueza das expressões culturais populares. Passou então a ver com novos olhos suas próprias raízes, até aí associadas a um estado de pobreza a ser superado e esquecido. A partir daí se tornou uma embaixadora das artes populares junto ao meio da decoração e dos interiores. Fez a cabeça de muitas jornalistas da área, como Olga Krell, da Casa Claudia, e Tazia Lamartine, da Casa & Jardim. Das residências ampliou os segmentos de atuação para espaços corporativos e para os hotéis, levando a visão da mistura também para esses ambientes.

Todo espaço era espaço para Janete fazer suas exposições e difundir suas ideias, inclusive os shopping centers. Aqui, mostra montada por ela em 2002 no Rio Design Barra. Potes de água estavam em seu DNA. A iluminação dramática valoriza os objetos. 
Foto Divulgação Cepe

A atuação no segmento de interiores foi ampliando a sua voz como uma formadora de opinião. Disso foi um passo para a curadoria de exposições que marcaram época, tais como Artesanato como um caminho, organizada na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), em 1985; e Viva o povo brasileiro, em 1992, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – esta lembrada no livro pelo então diretor do MAM, Marcus Lontra. Janete era mestra em mostrar as obras de uma forma que fizesse com que os visitantes as olhassem com novos olhos, percebendo a sua força. Falava da necessidade de ritmo na disposição das obras no espaço, com agrupamentos intercalados de vazios. Várias vezes se valia de uma iluminação dramática para valorizar as peças.

Fui sua assistente e responsável pelos textos em Arte popular brasileira, realizada em 1995 no Riocult, Rio de Janeiro. Os dias e noites que passamos na montagem valeram com um curso intensivo de curadoria e expografia. Fazia e refazia até ficar contente com o resultado. Os montadores não se queixavam de desfazer o que tinham acabado de fazer. Todos nós éramos contagiados pela paixão dela e pela convicção de que todos os detalhes eram importantes.

Exposição Meninas Geraes, no Museu da Casa Brasileira, São Paulo, em 2003: ritmo na repetição. / Foto Andrés Otero

Foi esse olhar privilegiado e essa bagagem de conhecimento que Janete Costa trouxe ao Artesanato Solidário no momento de sua transformação em OSCIP e de mudança de sua sede, originalmente em Brasília, para São Paulo. Uma exposição com sua curadoria e expografia foi montada para marcar a virada. A inauguração em 26 de setembro de 2002, ocupando todo o espaço do subsolo do Instituto Tomie Ohtake, foi um evento marcante, com a presença de algumas centenas de pessoas. Helena Sampaio, então coordenadora nacional, e Claudia Cavalcanti, do Núcleo de Comunicação e Difusão, se lembram de como ganharam discernimento e aprenderam no processo de preparação da mostra. As estruturas de ferro foram especialmente projetadas para poderem, após a desmontagem da exposição, servir como mobiliário para a loja que seria montada na sede do ArteSol, na rua Alves Guimarães, também no bairro de Pinheiros. A cooperação se repetiu em mostras organizadas pelo ArteSol em Brasília e em Recife, e se transformou em amizade.

Em 2003, quando assumi o Museu da Casa Brasileira, eu precisava sinalizar a que eu vinha – eu queria transformar o Museu em campo de expressão da imensa riqueza cultural brasileira. Comecei em maio e já em julho, com recursos reduzidos, abríamos a exposição Meninas Gerais, que havia sido montada por Renato Imbroisi no Rio de Janeiro e em São Paulo ganhou um projeto lindo de Janete. Seguimos numa parceria constante, inclusive no exterior, como na exposição realizada em San Francisco, EUA.

 

A exposição Artesanato Solidário marca a vinda da sede do ArteSol para São Paulo, em 2002, e foi realizada no Instituto Tomie Ohtake. As estruturas de ferro foram depois aproveitadas em showroom na sede da instituição. / Foto Roberta Borsoi

Um dos focos de Janete como curadora foi organizar exposições para mostrar didaticamente a seus pares decoradores e arquitetos como as obras ditas populares podiam conviver, em diálogo profícuo, com obras de arte erudita e com design contemporâneo, instigando-os com esses exemplos. Elas podiam ocupar shoppings center ou museus de prestígio, como o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, onde realizou Interferências, em 2002.

O livro agora lançado pela Cepe certamente ajudará a diminuir o gap entre a grandeza da obra de Janete Costa e o reconhecimento a ela, que deixa a desejar, “talvez por ser mulher e nordestina, uma combinação ainda muito subestimada no meio arquitetônico nacional”, nas palavras do jornalista e escritor pernambucano Júlio Cavani, um dos autores do livro. Certamente esses fatores contam. Mas, a meu ver, contam também, entre outros fatores, o fato de que no caso dela não houve uma instituição de difusão e investigação a exemplo do que o Instituto Bardi fez com a herança de Lina Bardi. Conta também o fato de que as ideias de decolonização da cultura professadas por Janete eram muito precursoras para a época, e só agora encontram terreno mais fértil para vicejar. Que esse livro ajude nesse florescimento e na valorização do pensamento e do legado de Janete Costa.

Ambiente de Janete Costa em exposição Design brasileiro contemporâneo no San Francisco Design Center, Estados Unidos, em 2005. Curadoria de Adélia Borges. Foto Instituto Fazer Brasil

 

Serviço:

Lançamento do livro Janete Costa - Arquitetura, Design e Arte Popular

25 de março, às 19h, no canal da Cepe /Editora no YouTube, com participação de Adélia Borges, Júlio Cavani, Roberta Borsoi e Diogo Guedes

Preço do livro: R$ 100 (impresso); R$ 40 (E-book)

 

Sobre o autor

Adélia Borges

Adélia Borges é crítica, historiadora de design e curadora independente. Jornalista formada pela Universidade de São Paulo em 1973, tem textos publicados em sete línguas e é autora ou co-autora de 34 livros. Palestrante frequente, já se apresentou em 22 países. Como curadora, fez exposições em várias instituições do Brasil e do exterior. Desde 2016 é consultora curatorial do MASP Loja. Integra o Conselho técnico consultivo da Artesol. Em 2021 recebeu o título de doutora honoris causa da Unesp (Universidade Estadual Paulista). www.adeliaborges.com
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