
Edicinamar de Nazaré da Rocha e Silva

AS MÃOS QUE CRIAM, CRIAM O QUE?
Detentora de uma estética harmônica, que guarda em seu fazer a geometria herdada da arte
marajoara e mantida pela arquitetura típica com guarda-corpos primorosos em originalidade
de traçado, as Varinhas da Conquista são um dos tesouros culturais encontrados na Ilha do
Marajó, Pará.
Fruto de uma prática baseada na herança entregue através de gerações - usualmente na forma
de transmissão oral - a produção das varinhas vem sendo mantida e perpetuada há décadas
pela família Rocha e Silva. A matriarca, Dona Nilma foi quem recebeu da avó materna o saber
tradicional com o qual criou os 12 filhos, dos quais cinco ainda praticam. Entre eles,
Edicinamar, conhecida por Baixinha do Regatão, que tomou para si, há mais de 40 anos atrás, a
missão de continuidade dessa arte. E dela vive exclusivamente.
Munida de firmeza nas mãos e paciência, ela habilmente realiza cortes na varinha, ora
verticais, ora horizontais. O cruzamento das linhas dá origem a peças geométricas que são
delicadamente retiradas de maneira alternada formando um contraste entre claro,
representado pelo miolo da vareta, e escuro, representado pela casca da árvore. No feitio, o
instrumento de corte permanece imóvel - é com a habilidade do dedo guia e da mão que se faz
a volta completa ao redor da varinha. Um ofício que os artesãos denominam de “bordado”,
constituído em meio a “pontos” que são na verdade os motivos do grafismo, baseados em
cerca de 15 desenhos originais deixados pela avó. “De um ponto, a gente já cria outro, isso é o
encanto”
A haste utilizada é retirada de um arbusto chamado taquari (Mabea Taquari Aubl.), usado
antigamente pelos índios para a produção do arco e flecha e para o fumo do cachimbo.
Pertence à família das euphorbiaceae, comum na região, cujo nome popular é Santa Clara - por
isso seu segundo nome de batismo: Varinhas de Santa Clara. No momento da coleta, não há
necessidade do corte da árvore, que continua o ciclo de crescimento mantendo a ramificação
de 6 varas em média em cada nó. Dependendo da idade do arbusto, os diâmetros das
ramificações variam, oferecendo diferentes possibilidades ao artesão. "Quanto mais a gente
tira mais ela tem a capacidade de brotar. A gente tira e deixa o toco dela pra ela brotar”
O corte é feito com terçado (foice). Perene, o arbusto permite que o artesão se abasteça
regularmente durante todo o ano. Já em casa, Edicinamar gosta de deixá-las murchar ao vento
para começar a bordar. "Ela tem um leite, gosto de deixar escorrer.” Depois de prontas põe para
secar ao sol ou à sombra para perderem um pouco do peso, principalmente em se tratando de
encomendas para viagem, o que reduz significativamente o custo de frete.
QUEM CRIA?
A mãe de Baixinha, Dona Nilma, era neta de índios e aprendeu o ofício, por tradição, com sua
mãe, avó de Edicinamar. Assim como as demais mulheres da família, Baixinha tem sua historia
como artesa iniciada na infância. Herança da avó, que segue para filhos, sobrinhos e netos.
Onde quem vem depois honra e ajuda os mais antigos e experientes. Ela começou a bordar na
idade de 6 a 7 anos - enquanto a mãe fazia o bordado, a menina aprendia só olhando. Sao em
12 irmãos, entre homens em mulheres e quase todos aprenderam mas quem teve interesse e
levou adiante a missão de perpetuar a arte foi ela. Na família assumiu também a
responsabilidade pelas vendas, da sua própria produção e de todos os outros irmãos, que
seguem no ofício sem o compromisso comercial.
"É minha força de sobrevivência. Nunca deixo de fazer, nunca vou abandonar. Aprendi devido a
mãe bordar muito, era nosso sustento. Minha mãe borda até hoje, aos 76 anos”.
O pai, Mestre Regatão, falecido há cerca de três anos, era mestre de Carimbó. Cantor e
compositor, foi um dos primeiros membros a trazer o Carimbó para o Marajó. Recentemente
recebeu em homenagem a construção de uma praça em seu nome, a Praça do Regatão. “Era
ele quem vendia nossas varinhas, ele saía na bicicleta e vendia. Dizia que produzia mas só
vendia mesmo."
Uma família que nunca negou conhecimento a ninguém. Bastava querer aprendeu e Dona
Nilma ensinava, e assim Edicinamar segue fazendo. “Artesanato é uma coisa que sai da cabeça.
Quando mais a gente faz, mais a gente vai criando novas coisas."
Apesar de clientes ilustres como a escritora e poetisa Marta Medeiros e a curadora Adélia
Borges que fez encomendas na ocasião da exposição de abertura do CRAB (Centro de
Referência do Artesanato Brasileiro), a maioria de suas vendas ainda é para um mercado local.
Sem apoio dos gestores locais ou programas de âmbito estadual ou federal, seu trabalho segue
quase anônimo ou muito pouco divulgado pelo resto do Brasil. Recepciona, demonstra e
ensina muita gente, mas recebe muito pouco em troca.
ONDE CRIA?
As Varinha da Conquista são uma herança indígena tradicional da Ilha do Marajó. Segundo
Baixinha, tradição herdada há três gerações, iniciada pela bisavó nordestina, nascida no Ceará,
filha de português com mestiça de índio e negro. Com mãe e avó paraenses de raizes
nordestinas, Edicinamar traz no sangue o legado de um povo miscigenado. “Foram os
primeiros cearenses a chegarem a Soure”.
Sem assegurar a origem desse saber - talvez um resultado híbrido de culturas indígenas, negras
e até mesmo europeia - ela segue perpetuando essa arte e encantamento permeados de
misticismo e ancestralidade que as "varinhas de condão" - como a avó as percebia - ofertam.
“Tudo é fé”, a avó dizia. A mãe, Dona Nilda, não trabalha mais bordando mas permanece na
coleta da valiosa matéria prima para a filha bordar. “Sempre faço o sinal da cruz antes de entrar
no mato, eu peço licença quando vou no olho dágua”. E assim acreditam que, em gratidão, as
varinhas sigam lhes trazendo sorte - nos negócios, no amor, de uma pessoa para a outra,
transmitindo energia e retirando o mal. Não desistem.Insistem no desafio de salvaguardar esse
tesouro acreditando que um dia o trabalho ganhe o mundo “Quem sabe um dia vai dar certo”.
Rede nacional do artesanato
cultural brasileiro
