Um olhar para a arte que nasce da intuição
A mostra Que Mestre É Esse? recebeu a curadoria de Leonel Kaz e projeto cenográfico de Jair de Souza, contando com 190 peças, de 62 artistas populares reconhecidos, dispostos em 9 salas ricamente aparelhadas por recursos audiovisuais. O acervo contou com o empréstimo de peças de diversos colecionadores e galeristas. Na foto acima, Sala Floresta Feita à Mão . Foto: divulgação
Gilberto Freyre diz:
Seção de peças do grande artista Nino do Crato, que inspirou a carreira de muitos artesãos do sertão do Ceará. Sua obra é marcada por uma profusão de cores e texturas impressas em madeiras. Foto: Artur Lins
Segundo o curador Leonel Kaz: “Nos demais países latino-americanos e grande parte dos países do mundo, a arte popular é mais folclórica, anônima. No caso do Brasil, o artista popular é singular, ele tem o nome dele agregado à obra e à invenção. Essa é uma característica muito forte da arte popular brasileira”.
Nessa exposição, a proposta era oferecer às artes populares o mesmo posto de que desfruta as belas-artes, com apelo à experiência estética a partir da singularidade de cada obra. Por isso, o curador se justifica:
“Sem data, sem território, sem nada. Nós partimos do sentido estético. Quem quiser faça a sua camada. A exposição não pode ser um ordenamento. Não queremos uma forma muito rigorosamente acadêmica. O percurso museológico tem que ser rico, tem que ter sístoles e diástoles, tem que ter muita luz ou pouca luz, tem que ter uma coisa arrebatadora e uma coisa mais amena, eu acho que esse tipo de percepção é importantepara o visitante”, diz Leonel Kaz.
Uma narrativa construída pelas subjetividades
Peças do artista Nino do Crato que retrata elementos míticos, rituais, bichos e outros elementos presentes no universo do Cariri do Ceará . Fotos: Artur Lins
No monobloco de madeira, observamos pássaros, bois, macacos, peixes, personagens humanos e folclóricas, cenas de rituais e demais elementos, dispostos em uma narrativa de múltiplos planos, a partir da sugestão bruta da matéria-prima, com as suas curvas e inclinações naturais. Olhamos para volumes de cores vibrantes, primárias e secundárias, que tendem a receber o contraste de pinceladas sobrepostas com tons de marrom, preto e branco, provocando o efeito de desgaste acompanhado da emoção de assombro.
Através de Nino aprendemos que a virtude da criação corresponde a uma realidade distinta, fantasiada e suprassensível.
Passando adiante, em um corredor estreito tomado por projeções imagéticas, o visitante era afetado pelo som da rabeca de Mestre Salustiano (1945-2008), pernambucano da cidade de Aliança – mestre-artesão luthier (que produz instrumentos de corda). A sala introduzia a temática dos ofícios (carpinteiros, ferreiros, oleiros e etc.), um importante elemento da manualidade dos artistas populares. Manoel Salustiano é exemplo de como um ofício pode ser completo, construía as rabecas e punha-se a tocá-las.
Mestre artesão luthier Salustiano que ganhou uma projeção com registros do artista tocando sua rabeca em uma sala dedicada aos ofícios. Foto: divulgação
Ato contínuo: a sensação de monumentalidade. Entrávamos em uma floresta feita à mão, sonorizada pelo delírio percussivo de Naná Vasconcelos. Saltava aos olhos a verticalidade de objetos totêmicos. Logo na entrada, fui recebido por São Jorge e São Francisco, efusivamente coloridos, assinados por Antônio de Dedé. Caminhando pela floresta, um conjunto de onças de Arthur Pereira surpreendia pelo movimento expansivo. Na madeira nua, imagens de Exu adornadas por falos e cobras aludem à inspiração religiosa de Chico Tabibuia. Entre cheios e vazios, formas circulares erguem a genealogia metafísica das Rodas Vivas de Geraldo Teles de Oliveira.
Na tradição do último artista, temos uma impressionante escultura de Jadir João Egídio, com figuras verticais ladeadas em superfície áspera, que expressa a gravidade de faces humanas em nítido sofrimento. Ao fundo, três grandes ícones, Mestre Guarany, Manoel Graciano e Véio: o primeiro nos recorda a clássica imaginária apotropaica das carrancas do Rio São Francisco; o segundo, tendo feito escola em Juazeiro do Norte, exibe, por uma briga de cães, os seus típicos animais ferozes de enormes bocas que rangem audíveis; o terceiro, ainda vivo e residente no sertão sergipano, mistura de figuração com abstração, poético em cada detalhe e curiosamente satírico, a exemplo do personagem de nariz alongado e gravata enrolada no pescoço.
Escultura do mestrre mineiro Arthur Pereira que tem um estilo próprio de entalhar presépios, onças, bichos em geral e figuras antropomorfas, esculpidas no miolo macio troncos de cedro, monoblocos sem emendas. Foto: Artur Lins
Deixando as penumbras da floresta, entrei em um reluzente salão e me dei com uma enorme vitrina, em diagonal, disposta no centro. Nas paredes laterais, headfones convidavam os visitantes à audição da música popular brasileira, de Tom Jobim, passando por Luiz Gonzaga até Racionais MC’s, entre outros. Quase uma centena de peças, cobrindo o percurso criativo de um século inteiro, eram testemunhas da plasticidade exuberante da arte popular brasileira. Destaque para a cerâmica: Dona Izabel, Noemisa Batista e Ulisses Pereira encantam com a tradição do Vale do Jequitinhonha; Mestre Vitalino, Mestre Galdino e Manuel Eudócio recordam a força e pioneirismo do Alto do Moura; Dona Irinéia, Sil da Capela e Ana das Carrancas cravam a presença das mãos femininas no emaranhado desse vasto e rico universo.
Seguindo em frente, entramos em uma pequena sala que rende tributo ao simbólico sagrado do baiano Mestre Didi (1917-2013). A partir da nervura da palmeira, palha da costa, couro pintado, búzios e contas coloridas, inspirado nos objetos litúrgicos e no imaginário sincrético dos cultos afro-brasileiros, especialmente o candomblé, formas sinuosas nos fazem deslizar o olhar entre totens mitopoéticos, serpentes, espíritos arbóreos e um grande pássaro ancestral, intitulado Eye Nla Agba.
Obra do escultor e sacerdote Mestre Didi que criava peças únicas de cunho sagrado em tributo à cultura afro iorubá. Foto: Artur Lins
Virando à esquerda, levei um susto! Despencavam do teto suportes audiovisuais tentaculares, dispostos em frente a cada uma das 16 cadeiras – tronos entalhados na madeira – que compõem a instalação com a seguinte advertência: “Essas cadeiras são obras de arte. Favor sentar com cuidado”. Na tradição do mobiliário rústico de Mestre Fernando Rodrigues, a sala celebrava a existência do povoado alagoano Ilha do Ferro, situado à beira do Rio São Francisco, um pequeno lugarejo de farta criatividade. Nos visores flutuantes, o visitante, ao experimentar o assento das obras, assistia a seis depoimentos de consagrados mestres artesãos. A instalação nos relembrava que, em matéria de arte, a forma excede a função, através de uma excelente amostragem do vigor inventivo de um design popular que brota do mesmo chão de terra batida do sertão
. Sala das cadeiras - com cadeiras-esculturas do Mestre Fernando Rodrigues da Ilha do Ferro - AL . Foto: Artur Lins
Quando nasce um artista?