Mestre Vânia e o artesanato que dá vida à cultura popular do Nordeste

Para Mestre Vania, a cultura popular nasce no modo de viver do povo de um lugar, sendo a expressão de sua originalidade. E o artesanato tradicional expressa justamente a vida cotidiana, o dia a dia de uma comunidade, de um povo, sendo os artesãos aqueles que fazem o repasse desse modo de se expressar para as gerações que seguem.
Raquel Lara Rezende

Mestre Vânia e as miniaturas de chapéu de Guerreiro, principal folguedo alagoano. Foto: Raquel Lara

Pensar na cultura popular brasileira me remete à imagem de um imenso caldeirão borbulhante, de onde explodem diversas cores, sons, texturas, ritmos… Sempre me encantei com a diversidade gigantesca de manifestações culturais que existe no Brasil. Sempre me impressionou a tamanha riqueza que pulsa nesse território. E desde que comecei a colaborar com a Artesol, tive a felicidade de conhecer muitas pessoas que têm seu cotidiano comprometido com o fazer artesanal. Vi muitas técnicas, peças, mas principalmente, vi muitos sorrisos, senti muitos abraços e me encontrei no brilho dos olhos de muitas artesãs e muitos artesãos, quando falam sobre o artesanato.

Mestra Vânia de Oliveira Santos, do estado de Alagoas, é uma dessas pessoas cheias de magia, saber e amor. Magia que se manifesta na capacidade de transformar uma matéria-prima, como o barro, a taboa, a linha de algodão, em uma criação sua. Saber que se faz presente nas histórias, na experiência de 38 anos como artesã e no amor que inunda e transborda dos olhos, quando fala sobre o artesanato tradicional e a cultura popular brasileira, e do seu ímpeto em querer repassar seu conhecimento para outras pessoas.

Vânia sempre foi apaixonada pela cultura popular. “A cultura na minha vida, estava no meu sangue. Eu só não participava mais dos grupos folclóricos, das danças folclóricos, porque meu pai era muito rigoroso e ele não permitia, mas eu no colégio, eu fazia tudo. Tudo o que tinha direito eu fazia no colégio, porque ele não tava lá…”


Auto dos Guerreiros é um dos mais característicos e importantes folguedos populares de Alagoas.A produção do chapéu do Guerreiro rendeu à mestre Vânia o título de patrimônio vivo do estado.  Foto: Reprodução: Correio dos Municípios

Em Alagoas, existem cerca de 26 folguedos, como Guerreiro, Pastoril, Reisado, Fandango, Chegança, Caboclinho, Nega da Costa, Taieira, entre outros. Assim, desde criança a cultura popular que já corria por suas veias se tornaria sua maior inspiração, seu norte, na produção artesanal e nas escolhas que fez enquanto artesã, em prol de toda a comunidade brasileira de artesanato. 

Mestra Vânia deixou que seu amor pela cultura popular a guiasse como importante agente na reivindicação do valor e da importância do artesanato para o Brasil, e de melhores condições de trabalho para todas as artesãs e todos os artesãos. Sua arte passou a ser também a forma que encontrou para espalhar pelos quatro cantos do Brasil, um pouco da alegria, das cores e da beleza dos tantos folguedos e manifestações culturais presentes no estado de Alagoas e no Brasil, como um todo.

Antes do artesanato entrar em sua vida, Vânia foi jogadora de basquete, integrando a primeira seleção de basquete feminino do estado de Alagoas, onde nasceu e viveu toda a vida. Casou-se aos 17 anos e logo chegou a primeira filha. Seu desejo de fazer uma linda festa para ela, a levou a experimentar fazer ela mesma as lembrancinhas. “Deu certo e eu vi que eu tinha dom pra fazer arte. Aí eu comecei a fazer só lembrancinha pra aniversário, festa de aniversário, e o pessoal gostando, e eu fui fazendo”. 

Depois de um tempo, mudou-se para Arapiraca, onde foi convidada pela irmã, dona de uma escola infantil, a dar uma capacitação para as professoras de como fazer jogos e brinquedos com material reciclado. Essa foi a primeira das muitas experiências, enquanto professora, ou ativadora do artesão interior de muitas pessoas.

Na verdade, eu não ensino ninguém a fazer artesanato, eu simplesmente acordo o artista que está dentro dele dormindo. Eu só faço isso, porque o dom é deles. Eu só faço despertar e dar os caminhos. O dom é deles. Quem não tem o dom não consegue fazer. Mas cada um tem um pouquinho de arte, de artista escondido. Só falta descobrir que caminho seguir, com que técnica se identifica mais. É esse meu papel. Por isso que me perguntam: você entende de tudo? Não, eu não entendo de tudo. Mas eu dou condições das pessoas despertarem pra qual caminho elas querem seguir. Isso eu sei fazer. Então, eu me sinto muito orgulhosa de dever cumprido, o meu papel, pra que foi que eu vim, nesse mundo de Deus. Se Deus me deu esse dom, não é pra ficar só pra mim, é pra eu fazer esse repasse e ajudar as pessoas também, pelo menos um pouquinho.

É justamente essa disposição em estar presente para as pessoas e ser uma porta aberta para um novo caminho, que faz de Vânia e tantos outros artesãos e artistas populares, Mestres. A felicidade de Vânia cresce com cada pessoa que passa a trabalhar com o artesanato e ali se encontra, se desperta. Dessa forma, ela sente que está caminhando com a sua missão. Mas a missão para a qual escolheu se dedicar é ainda maior. 

Seu sonho é que o artesanato receba o reconhecimento e a valorização devida tanto da sociedade de forma geral, como do próprio segmento da cultura popular brasileira. “O que eu acho que ainda falta em muitos lugares, é justamente o reconhecimento do artesanato sendo cultura popular, porque muita gente não aceita isso. O pessoal que faz cultura popular, que tem isso nas veias, eles demoram pra entender que o artesanato faz parte também dessa cultura. Então, por exemplo, aqui no meu estado, eu comecei a mostrar a importância do artesanato dentro da cultura popular. Porque eu mesma, por exemplo, eu tento não deixar morrer a cultura do meu estado, pelo artesanato”.

Para Mestra Vânia, a Cultura popular nasce no modo de viver do povo de um lugar, sendo a expressão de sua originalidade. E o artesanato tradicional expressa justamente a vida cotidiana, o dia a dia de uma comunidade, de um povo, sendo também aqueles que fazem o repasse para as gerações que seguem, assim como os Mestres dos folguedos. 

Octavio Paz, um escritor mexicano que eu admiro muito, fala que o artesanato se trata mais das pessoas que dos produtos, porque o que nasce do trabalho artesanal é um objeto “com alma”, que carrega em sua forma, seus traços, suas texturas e cores, o saber, a arte, a criatividade e o jeito de um povo. Quando vemos um objeto artesanal, talvez por um momento ele seja apenas um objeto, mas se temos a oportunidade de saber as histórias que vêm com ele, o lugar de onde veio, ele passa a ser muito mais que um objeto.

O artesanato é uma das maiores riquezas que nós temos. Ali está cada pedacinho de sentimento, da nossa vida, da nossa história, faz parte da nossa arte, quando a gente está fazendo. A gente faz com tanto carinho… A gente transmite o que a gente tá sentindo. Tanto é que quando a gente não tá legal, nosso colorido cai um pouco. O artesanato cura tanta coisa, tanta coisa… "


"E que eu não sei nem dizer a você o que eu tô sentindo no momento, quando eu falo nisso. Eu me emociono muito e às vezes foge o que eu estou sentindo do que eu estou falando. Eu gosto tanto do que eu faço, que às vezes eu deixo de produzir pra ir à luta, para defender os nossos artesãos, o nosso artesanato”, conta Vania.

Quando conheci Mestra Vânia, pela Rede Artesol 2, e eu tive a alegria de escutá-la, me impressionou muito o amor que transbordava dos seus olhos, literalmente, inclusive, enquanto falava do artesanato e da cultura popular brasileira. Essa sua capacidade de olhar para o segmento como um todo e dedicar toda sua vida a essas pessoas que fazem do Brasil, um país mais colorido, criativo e belo, me despertou muita admiração. E eu acredito que, principalmente nesse momento, o que mais precisamos é silenciar, escutar e aprender com essas mestras e mestres que tanto têm a ensinar sobre tantas coisas, como humildade em se colocar a serviço para a comunidade, sobre integridade, sobre criar novas possibilidades econômicas e sociais para todos, sobre dedicação, amor e tantas outras coisas que não cabem mesmo em palavras. 

Que nós possamos, realmente, honrar e aprender com nossos mestres e mestras da cultura popular brasileira, esses guardiões de tantos saberes que não se encontram na maior parte das escolas, mas que forjam tanto da nossa identidade cultural, sem que tenhamos consciência disso. Que possamos aproveitar mais esses saberes que são nossa verdadeira riqueza. E que o sonho de Mestra Vânia se realize para todas e todos artesãs e artesãos: que recebam o reconhecimento mais que merecido e tenham melhores condições de seguir com esse legado que diz respeito à história de todo Brasil.

 
Sobre o autor

Raquel Lara Rezende

Raquel Lara Rezende é colaboradora da Artesol. Formada em Comunicação Social, tem doutorado em Educação e transita entre as mais diversas possibilidades de expressão da cultura popular, seja pesquisadora, artista ou cantora.
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