Artesanato da piaçava: uma herança afro-indígena dos territórios quilombolas do Baixo Sul da Bahia

Em Ituberá (BA), o contexto que envolve o resgate da prática artesanal e a proteção dos recursos utilizados na confecção do mesmo é uma prova da relação entre artesanato, memória e sustentabilidade
Egnaldo Rocha da Silva

A palmeira da Attalea funifera Mart., nome cientifico da piaçava ou piaçaba, como é popularmente conhecida na Bahia, é endêmica da região costeira dos territórios de identidade do Baixo Sul e Litoral Sul do estado. Ao transitar pelas comunidades remanescentes quilombolas, de pescadores, marisqueiras e indígenas presentes nesses territórios, será impossível não perceber na paisagem natural da região a sua presença.

Da piaçaveira se aproveita comercialmente a fibra, utilizada para fabricação de vassouras e artesanato; a casca da fibra utilizada para coberturas de quiosques; da semente ou coco, subtraim-se três subprodutos, aproveita-se o casca do coco, do qual se produz um amido, utilizado para a produção de uma deliciosa canjica e o coco para produção de carvão vegetal e artesanato (biojoias).

O manejo extrativista da piaçava na região é uma herança ancestral dos povos originários que habitavam esse território quando da chegada dos colonizadores. O Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied quando de sua passagem por Olivença (Ilhéus), em 1817, observou que “um dos principais ramos da indústria dos habitantes de Olivença” era a fabricação “dos rosários, que eles fazem com coquinhos de piaçaba”, acrescentando que “as suas fibras fornecem aos navegantes cordame extremamente durável, que desafia tanto as tempestades como a umidade; seu fruto alimenta os habitantes de várias régios deste litoral. A existência de toda uma tribo, os Guaranis, esta ligada à existência dessa palmeira”.

Assim como em todos os rincões do Brasil, com o avanço da colonização do território, por aqui também aportaram homens e mulheres, negros e negras, sequestrados do continente africano para serem escravizados por estas bandas. Uma vez aqui, construíram estratégias de reconquistarem a liberdade, sendo a formação de quilombos a mais recorrente. Foi nas vilas colônias presentes nesses territórios onde mais proliferou a formação de quilombos na Bahia. Na atualidade, muitas dessas comunidades sobrevivem do extrativismo da piaçava.

Até as últimas décadas do século XX, o extrativismo da piaçava para produção de vassoura foi a principal, em alguns casos, a única fonte de renda para essas comunidades remanescentes quilombolas, até que, gradativamente, a fibra começou a perder valor de mercado, tornando o seu extrativismo inviável. Isso colocou em risco não só a sobrevivência e a capacidade de reprodução física e cultural das comunidades, como o próprio ecossistema (Mata Atlântica), uma vez que os piaçavais começaram a dar lugar a lavouras mais rentáveis, a exemplo das plantações de cacau. A comunidade remanescente quilombola da Lagoa Santa, localizada no município de Ituberá, é um exemplo de territóriio que viveu esse processo.

Nesste contexto, uma alternativa a essa realidade que vem sendo adotada pelas comunidades é a produção do artesanato, tanto a partir da fibra com os trançados, bem como de biojóias, a partir do coco. Santilia Ramos dos Santos, de 61 anos, mantem-se esperançosa com os novos e alvissareiros ares que o artesanato vem trazendo: “eu até hoje estou ainda lutando, eu acredito que o artesanato para mim ainda vai me ajudar, eu acredito”.  

Quem também vem se destacando na comunidade é a jovem Daiane Conceição dos Santos, 26 anos. Ela produz biojóias tendo como matéria prima o coco da piaçava.  Vende sua produção pela internet (lagoasantajoiasdoquilombo) e nos circuitos de feiras de artesanatos dos quais participa. Em 2022, Diane foi uma das ganhadoras do prêmio TPO 100 de artesanato do SEBRAE.

Com a produção do artesanato tem-se materializado a diversificação da cadeia produtiva da piaçava, criando novas perspectivas de renda para os membros das comunidades com potencial de contribuir para que os jovens permaneçam nela, ao lado de seus pais.

O artesanato pode igualmente contribuir para a manutenção do modo de vida integrado ao ambiente, mantendo a viabilidade e sustentabilidade do extrativismo da piaçava. Mas para que isso possa se afirmar enquanto uma realidade viável, se faz necessário a implementação de políticas públicas que visem fomentar a disseminação da produção e, sobretudo, de ampliação dos canais de comercialização.

 

 

[1] MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. Viagem ao Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1940, p. 322-323.

[2] Em 2017 foi produzido um documentário sobre a história da comunidade: “Lagoa Santa: Nós e Eles” que esta disponível no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=WN4CZa5LvcI

Sobre o autor

Egnaldo Rocha da Silva

Egnaldo Rocha da Silva é quilombola e aquilombado pelas causas educacionais e culturais. Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); autor o livro “Comunidades negras: conflito e luta pela terra no Baixo Sul da Bahia (1950-1985)”, editora Annablume, 2019; Gestor Cultural do Município de Ituberá-Ba.
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