A valorização do artesanato no mercado de luxo na Itália

Bruna Rigato

Ateliê Davide Gatto foto. Foto: Cinque vie Network


Na Itália, luxo e artesanato estão intimamente ligados. Ao visitar Milão, capital mundial do design e uma das quatro capitais da moda, temos essa certeza. O famosíssimo Quadrilatero della moda, parada obrigatória de turistas e lugar de orgulho dos italianos, é um famoso quarteirão no centro da cidade, onde as principais marcas de moda e design do mundo se encontram. Mas, além dessas ruas famosas, o luxo também está presente em outras ruas anônimas, frequentadas pelos insiders e exploradores, que conhecem e reconhecem o valor do artesanato exclusivo e de alta qualidade. Assim, explorando a capital da moda, esbarramos em pequenas boutiques que possuem peças únicas assinadas por artesãos locais com peças que você não encontra em nenhum outro lugar do mundo. Um bom exemplo, é o ateliê do designer e artesão de couros, Davide Gatto, um tempestivo milanês, que possui um espaço no centro da cidade.  Sobre sua mesa de trabalho ou na sua descolada vitrine, encontramos bolsas únicas feitas a mão e sob medida. Fato curioso? Os preços não são muito distantes de uma bolsa da Gucci, e seus produtos podem custar até 2.500 euros. 

Ao encontrar essa realidade, é impossível não compará-la com o Brasil: imagine artesãos em suas lojas próprias, nos bairros mais caros das nossas capitais, vendendo produtos de artesanato local contemporâneo a preços equivalentes àqueles dos produtos de marcas de luxo internacionais. Por que seria possível em países europeus incorporar o artesanato com preços justos e valor adicional no mercado, e, em outros lugares do mundo, como é o caso do Brasil, é tão difícil cobrar e colocar o artesanato no mesmo nível do luxo?
 

Davide Gatto artesão de bolsas em couro. Possui seu ateliê/loja no bairo de cinque vie em Milão em pleno centro da cidade.Foto: Salvo Sportato

O grande responsável para essa valorização do artesanato na Europa, é o selo Made in Italy que, mais do que qualquer outra coisa, é um projeto de nação. A industrialização na Itália teve como base a tradição artesanal e, assim, o saber fazer, a qualidade na técnica e a história por trás das marcas, mesmo que os produtos sejam industrializados e seriados, são preservados. Ou seja, os valores do artesanato, intrínsecos na cultura italiana, migraram para a indústria de forma natural no período entre as guerras. Das bottegas às fábricas, essa é a história das principais marcas italianas.


Não é por acaso que produtos feitos na Itália representam 40% do mercado de luxo global, já que valores como exclusividade, alta qualidade e patrimônio cultural são reverenciados por esse mercado. Por isso, o fato de um produto ser etiquetado como “feito na Itália” é um grande atrativo para consumidores do mundo todo. Não são só os italianos que dizem isso: segundo o site britânico Lyst, 6 das 10 marcas de luxo da moda mais desejadas no mundo são italianas e, entre elas estão Bottega Veneta, Gucci, Prada e Fendi. Além de tantas outras qualidades, todas essas marcas têm em comum a tradição artesanal. O exemplo mais famoso é a bolsa intrecciata da Bottega Veneta, que utiliza de uma técnica de entrelaçar tiras de couro macio, que foi usada pela marca a partir dos anos 1970, e que promoveu o conhecimento dos artesãos locais da região do Vêneto.

 

A valorização do artesanato não acontece somente na moda italiana, mas também no design de produtos. O marketplace de luxo, Artmest é um caso de sucesso no mercado porque oferece uma curadoria minuciosa de móveis e objetos de decoração criados por artesãos italianos e os distribui no mundo inteiro. Ao explorar o site da Artmest, é possível ler sobre esses artesãos e nos surpreendemos com a longevidade de pequenas e médias empresas familiares que trabalham com artesanato há muitas gerações, como é o caso da Ginori, que existe desde o século 18. Mas também há lugar para as bottegas mais contemporâneas - o que mostra que o artesanato é futuro e não passado -, como é o caso da Post Design e tantas outras, surgidas há menos de trinta anos Independentemente da época na qual surgiram, todas elas valorizam e são valorizadas pelo fato dos produtos serem feitos a mão, por artesãos que passam o seu saber de geração em geração.

 

Artesã trabalhando no Ateliê do Pino Grasso em bairro central em Milão. Foto: Laila Pozzo Zamponi

É interessante entender que essa legitimação do Made in Italy e das marcas de luxo italianas não aconteceu de forma aleatória. Houve um plano do governo a partir dos anos 1950 para desenvolver a própria indústria, com foco na exportação de produtos de alta qualidade e com um design irrepreensível. Hoje em dia, o desejo desses produtos transcende as compras, e os valores dessa produção local e artesanato na Itália se tornaram uma atração turística. Por meio de iniciativas públicas que divulgam o artesanato e os artesãos, os ateliês de artesanato abrem as portas para o público anualmente.  É o caso do projeto “Manifatture aperte” em Milão ou a “Apriti moda” em toda a Itália.

O lado mais sombrio da valorização do artesanato eventualmente também aparece. Algumas marcas, ao entenderem que a identidade e as técnicas artesanais são um valor agregado muito forte e que atraem consumidores, estimulam a pesquisa temática e técnica inclusive fora da Itália. Por vezes a mídia especializada, tem mostrado que algumas marcas usam técnicas e copiam produtos ou ornamentos com origem em comunidades tradicionais até mesmo fora da Itália, sem remunerar ou dar os devidos créditos àqueles artesãos, praticando, assim, a apropriação cultural. Um exemplo recente que teve destaque na imprensa foi o da sandália de couro trançada lançada pela Prada na coleção pré-outono 2020. Essa sandália foi vendida nas lojas da Prada  por aproximadamente R$4.400, enquanto modelos artesanais semelhantes encontrados na feira de Caruaru no Ceará - mas também encontrados no México e no Marrocos -, saem por R$15.
 

Artesã trabalhando com técnica de bordado no Ateliê do Pino Grasso em bairro central em Milão. Foto: Laila Pozzo Zamponi

Para combater a cópia e apropriação cultural, comunidades ao redor do mundo estão se protegendo para valorizar suas próprias técnicas e cultura e, também, a de outros. É possível perceber o crescimento de parcerias entre artesãos e designers estabelecidos, como é o caso no Brasil de Ronaldo Fraga que co-criou uma coleção com as Rendeiras da Paraíba, ou, na Itália, da marca Marni com artesãs na Colômbia. Mas, infelizmente, a presença de  artesãos independentes e atuantes no mercado de luxo, não é tão corriqueira. Por isso, proteger e valorizar a própria cultura artesanal é a melhor maneira para se colocar no mercado internacional e desenvolver as próprias comunidades artesãs. Países como o Brasil, com uma riquíssima e diversificada cultura,  devem se colocar em um alto patamar de valorização e promoção das próprias técnicas e identidades, investindo nas comunidades artesãs para ganhar prestígio. Entendendo o Made in Italy, é possível perceber que o mercado de luxo é um caminho de legitimação do artesanato local, pois fortalece o valor daquela técnica e faz com que os produtos de artesãos sejam desejados e valorizados pelo mercado consumidor. O artesanato não deve competir com o mercado de massa mas sim com o mercado de luxo. 

 

 


 

Sobre o autor

Bruna Rigato

Designer de formação com experiência no setor de luxo, tanto no Brasil quanto na Itália. Trabalhou em marcas como Gucci e Moncler nas áreas de merchandising e desenvolvimento de materiais. É formada no Master de Brand and Product Management no Milano Fashion Institute e Politecnico di Milano, onde desenvolveu sua tese sobre sustentabilidade nas marcas de luxo. Com a sua experiência, Bruna desenvolveu seu olhar para a inovação no mercado global, atuando como uma das gestoras do projeto de formação de moda em Milão, a Fashion for Future, e também faz curadoria de projetos artesanais do Brasil para a Europa.
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