A questão da autoria no artesanato

O artesanato tradicional envolve valiosos recursos culturais, sociais e históricos das comunidades que o conservam e desenvolvem, mas nem sempre os criadores são valorizados como protagonistas dos seu próprio trabalho. No artigo abaixo, a curadora Adélia Borges discute a questão da autoria na relação entre designers e artesãos, defendendo modelos de co-criação que coloquem o artesãos em foco.
Adélia borges

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Artesã do Grupo Arte e Tramas do Maranhão. Foto: Theo Grahl

Um dos pontos mais nevrálgicos dos projetos de colaboração entre designers e artesãos diz respeito à questão da autoria. Como pesquisadora e curadora tenho acompanhado essa questão há cerca de três décadas. A constatação é que, via de regra, a balança da visibilidade e do reconhecimento favorece de forma desigual o designer, que tem seu nome difundido e valorizado, condenando os artesãos a um apagamento. Nos raros casos em que os nomes individuais de artesãos aparecem, é comum serem reduzidos aos prenomes, o que nunca vi ocorrer no caso dos designers.

A precursora dos projetos de aproximação entre designers e artesãos no Brasil, a pernambucana Janete Costa (1932-2008) era categórica: “A minha intenção é entrar no anonimato para que os artesãos saiam do anonimato”, costumava repetir. Ela nem sequer divulgava os inúmeros projetos que fazia (muitos deles informalmente, no calor de seu contato frequente com os criadores) e não se incomodava em ver artesãos vendendo os objetos em cuja concepção ela havia colaborado sem citar o seu nome. Ao contrário, achava que era um sinal de que o artesão havia se apropriado inteiramente das soluções formais ou técnicas trabalhadas, o que via como positivo.

Sem generalizar, creio que a senda aberta por Janete não foi acompanhada por muitos de seus sucessores, que relegam os artesãos ao papel de coadjuvantes. Creio que essa é uma relação de poder, como muitas outras que vêm sendo discutidas e trazidas à luz nos últimos tempos: do colonizador sobre o colonizado, do branco sobre o preto, do homem sobre a mulher etc. etc. etc. No caso, como os designers é que costumam deter os canais de acesso à mídia, é seu privilégio contatar os jornalistas e curadores – e nós, jornalistas e curadores, tantas vezes nos restringimos ao que nos é passado, que tomamos como verdade, sem contestação ou perguntas.

O resultado é um círculo vicioso à moda do mote criado nos anos 1980 pelo publicitário Enio Mainardi para a campanha do biscoito Tostines. “Vende mais porque é mais fresquinho, ou é fresquinho porque vende mais?”. Nossos designers são mais conhecidos porque aparecem mais ou aparecem mais porque são mais conhecidos?

Os modelos de co-criação ou design colaborativo

Antes de avançarmos, é necessário fazer uma distinção entre os tipos de participações possíveis dos designers nos projetos de revitalização do artesanato.

A forma a meu ver mais completa e com resultados mais efetivos a longo prazo é aquele que implica em projetos participativos, nos quais há uma criação coletiva entre artesãos e designers. Os designers não chegam com soluções prontas, mas a desenvolvem em conjunto com os artesãos.

Afinal, são esses que detêm o conhecimento dos materiais locais e das técnicas produtivas, bem como aspectos formais que são indissociáveis da produção no caso de comunidades tradicionais, em especial de indígenas, caso em que formas e grafismos traduzem visões de mundo repassadas desde tempos imemoriais.

Artesã do Povoado do Prata, no Jalapão, exibe bolsa trançada com capim dourado, artesanato símbolo da região. Foto: Paula Dib

Outra forma mais limitada em termos de alcance social, mas que pode gerar benefícios econômicos é a dos designers que utilizam a mão–de-obra artesanal para projetos dos quais eles, designers, são os autores. Uma condição indispensável é o respeito do contratante pelo contratado, pagando valores justos pelo trabalho e sem regatear. Deveria ser procedimento usual, mas nem sempre ocorre.

Na exposição “Origem vegetal – A biodiversidade transformada”, que inaugurou o CRAB (Centro Sebrae de Referência do Artesanato Brasileiro) em 2016, e da qual fui co-curadora ao lado de Jair de Souza, me impus o desafio de entrar em contato com todos os 113 participantes para verificar pessoalmente as autorias de cada projeto e poder escrever legendas corretas e justas.

Tecelã de Muzambinho (MG) e aprendiz entre os teares manuais. Foto: divulgação Amaria

Formatei as legendas com o primeiro nome sempre do protagonista, por exemplo, a associação ou cooperativa que fez o trabalho. Se houve a participação de designers nos processos, seus nomes apareceram na última linha da legenda, antecedidos pela expressão “co-design”, que significa justamente o design colaborativo, ou seja, resultante de um processo coletivo de criação e desenvolvimento.

Nos casos em que os designers desenvolveram todo o projeto e se consideravam seus autores, a relação se inverteu, com seus nomes aparecendo na primeira linha e na última, o dos artesãos, antecedidos pela expressão “elaboração de”.

Distinguir a co-criação da atuação em que o designer projeta e o artesão é um mero executor é essencial para que possamos avançar sobre bases éticas, em que os dois lados possam ganhar reciprocamente.

Como eu afirmo no capítulo “Relações delicadas” do livro “Design + Artesanato: O caminho brasileiro”, “se os artesãos são vistos como meros fornecedores de mão de obra, os designers e os empresários devem deixar isso claro, obedecer às leis trabalhistas e não chamar os seus projetos de design social”. [1]

O professor Gui Bonsiepe chama de “enfoque produtivista” aquele que “considera os artesãos como mão de obra qualificada e barata, utilizando suas capacidades para produzir objetos desenvolvidos e assinados pelos designers e artistas”. Segundo ele, “é necessária uma boa dose de ingenuidade para aceitar esse enfoque, apresentado como ‘ajuda’ para o artesanato da periferia.

Alegam-se interesses humanitários para produzir designs ‘inspirados’ na cultura popular local ou designs trazidos diretamente do centro para aproveitar a mão de obra barata dessas comunidades. Tal prática do design tende a perpetuar as relações de dependência, em vez de contribuir para sua superação”. [2]

Nas minhas visitas a comunidades, idas a feiras e acompanhamento geral de projetos venho observando que as peças que se sobressaem por sua qualidade resultaram de programas continuados de capacitação, a partir de programas de longo prazo, que implicam em inúmeras visitas das equipes multidisciplinares (não só designers mas também gestores, antropólogos, fotógrafos etc.). São aqueles que, nas legendas de “Origem vegetal”, apareceram como co-criação.

A designer paulistana Fernanda Martins, que também vem acompanhando esses projetos, especialmente os da Amazônia, onde vive há mais de 15 anos, tem como parâmetro perguntar se o designer “deixou alguma coisa no lugar” ou se, ao contrário, “apenas tirou”. Diz ela: “Essa deveria ser uma via de mão dupla, em que ambos aprendem e ensinam, mas nem sempre é o que se vê. Muitas vezes o designer, embuído de seu grande ego, passa como um cometa, que não deixa nada no lugar, ou como um furacão, que não deixa nada em pé por onde passa. Nessas circunstâncias, as consequências são mais negativas do que positivas para os artesãos, o lado fraco da corda, porque se criam expectativas não cumpridas.”

Peças das artesãs da Associação de Artesanato de Palha de Ipaguaçu Mirim. Foto: Camila Pinheiro

A discussão aqui tangenciada deveria prosseguir com uma reflexão que resulte em parâmetros éticos a respeito da colaboração entre designers e artesãos. Um material de referência obrigatória está no livro “Designers meet artisans”, publicado pela Unesco [3]. Quem se interessa pelos pressupostos da co-criação e do design colaborativo pode acessar também debates no ambiente digital que vêm sendo feitos desde 2020 pelo Laboratório de Design e Antropologia da Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LaDA-ESDI), dirigido por Zoy Anastassakis, e pelo Núcleo de pesquisas em imagem, design e antropologia da Universidade Federal do Maranhão (NIDA-UFMA), dirigido por Raquel Noronha, ambos disponíveis nos canais de You Tube das respectivas instituições.

Pontos incontornáveis desse necessário debate dizem respeito aos direitos de propriedade intelectual, especialmente nos casos de comunidades tradicionais, e aos limites e distinções entre co-criação e apropriação. Temas sobre os quais nossas leitoras e nossos leitores são convidados a se manifestar!

P.S. 1 - Daquelas memórias afetivas que ficam para a vida toda, lembro das expressões dos rostos de participantes da exposição EntreMeadas, que curei em 2019 no Sesc Vila Mariana. Nessa mostra, dedicada à produção artesanal têxtil feminina no Estado de São Paulo, levantei os nomes completos de todas as participantes das associações e cooperativas, incluindo local e ano de nascimento – como é praxe nas legendas de obras de arte. A relação de nomes ocupou toda uma parede da exposição e quatro páginas do catálogo. Foi emocionante na noite de abertura ver os rostos comovidos de autoras orgulhosas de afirmar “esta sou eu, fui eu que fiz”!

P.S. 2 – Um antídoto à atitude que descrevi acima é a valorização do artesão por meio de ações não se restringem à citação dos seus nomes em todas as fichas técnicas, mas incluem também levá-los a simpósios e palestras para que eles próprios falem sobre o seu trabalho (em tempos de encontros virtuais isso ficou ainda mais fácil do que antes) e a sugestão de que sejam contratados por organismos de fomentos para compartilharem seus conhecimentos em oficinas realizadas fora de seu território habitual. Essas ocasiões são muito importantes para o alargamento de horizontes e o crescimento profissional.

 


[1] BORGES, Adélia. Design + Artesanato: o caminho brasileiro, 2011, Editora Terceiro Nome, ISBN 978-85-7816-019-7, página 151.

 

[2] BONSIEPE, Gui. Design, Cultura e Sociedade  – São Paulo: Blucher, 2011. ISBN 978-85-212-0532-6     10-12482      CDD-745.2, página 63.

 

[3] Designers meet artisans - A pratical guide, Unesco, Craft Revival Trust, Artesanias de Colombia, Paris, 2005.

 

Sobre o autor

Adélia borges

Adélia Borges é crítica, historiadora de design e curadora independente. Jornalista formada pela Universidade de São Paulo em 1973, tem textos publicados em sete línguas e é autora ou co-autora de 34 livros. Palestrante frequente, já se apresentou em 22 países. Como curadora, fez exposições em várias instituições do Brasil e do exterior. Desde 2016 é consultora curatorial do MASP Loja. Integra também o Conselho técnico consultivo da Artesol. www.adeliaborges.com
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