
Mestre Alcides Ribeiro dos Santos

AS MÃOS QUE CRIAM, CRIAM O QUE?
Viola-de-Cocho é um instrumento musical tradicional das culturas populares do centro-oeste
brasileiro, mais precisamente dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Recebe este
nome por ser confeccionada a partir de um único tronco de madeira esculpido no formato de
viola, aos moldes de fabricação de um cocho (objeto lavrado em uma tora maciça de árvore e
usado para ofertar alimento aos animais na zona rural). O pequeno "cocho” corresponde à
parte da caixa de ressonância do instrumento, onde são fixados tampo, cavalete, espelho,
rastilho e cravelhas, que o caracterizam.
A viola é a protagonista de expressões culturais de origem indígena típicas da região: o Cururu
e o Siriri, música e dança, respectivamente, que se perpetuaram nas áreas ribeirinhas dessas
localidades. São saberes populares tradicionais presentes muito antes da divisão dos dois
estados - acredita-se que há mais de 300 anos. Os "cururueiros" mais antigos dizem que a viola
é fruto de uma tentativa de reproduzir a guitarra portuguesa, em uma época em que os
colonizadores trouxeram seus pertences e entre eles, as artes além-mar. Ambas possuem a
mesma afinação.
"A primeira tentativa foi com um cocho pra colocar sal pra gado. Fizeram as mesmas
ferramentas que usavam pra cavar os cochos do curral de boi. Copiaram a viola. Mas a guitarra
portuguesa tem varias cordas e aqui só colocaram cinco cordas e conseguiram a mesma
afinação, batendo todas elas”.
De lá pra cá o instrumento que se apresenta com cinco ordens de cordas simples sofreu muitas
mudanças. Foi aprimorado no acabamento. “Pai fazia viola só pra consumo dele. Não tinha
esse consumo que tem hoje." Praticamente toda a madeira que Alcides utiliza na fabricação é
de reaproveitamento mas possui autorização do IBAMA para corte, com uso restrito a
produção da viola. São várias as madeiras utilizadas em sua fabricação: para o corpo do
instrumento, a ximbuva e o sarã, para o tampo, a raiz de figueira branca e para as demais
partes, cedro. Após o corte Alcides já entalha a peça, do contrário a madeira estraga. Em
seguida põe ao sol para secar uma, duas semanas ou mais. “Descansa no sol igual pão”. Depois
monta e dá o acabamento. Originalmente as violas armavam-se com quatro cordas de tripa
(que foram substituídas por linhas de pescar - segundo os violeiros bem inferiores às de tripa) e
uma revestida de metal. Alcides reúne ferramentas com mais de meio século, mais um legado
deixado pelos antigos.
Cada artesão desenvolve a viola à seu modo e isso também é percebido de acordo com a
região. "Meu pai não usava muito metro, era tudo no olho. Já eu meço tudo. A viola de meu
pai parece baguari, fica sondando peixe de um lado para o outro. Apesar da Viola-de-Cocho
ter sido reconhecida pelo IPHAN como patrimônio imaterial brasileiro em dezembro de 2004
infelizmente vem havendo muita distorção, muito lutier que reproduz a viola, industrializando
o processo, subvertendo a matéria prima."
QUEM CRIA?
Alcides Ribeiro dos Santos é Mestre da Cultura Popular do Estado de Mato Grosso. Assim
considerado por dedicar sua vida e obra à produção e manutenção das práticas e saberes
relativos à arte da viola-de-cocho por mais de quatro décadas. Reconhecido pela transmissão
de seus conhecimentos para toda uma comunidade e por sua destreza técnica no ofício.
Caçula entre 13 irmãos, ele pertence a quarta geração de fazedores de viola-de-cocho na
família. Um ofício de antepassados, que herdou do pai e do avô paterno apenas olhando,
ficando ali. O pai era pantaneiro, com quem era muito apegado em todos os afazeres. "Eu
parecia um velho matuto mexendo com viola de cocho no meio dos velhos cururueiros.” Sendo
um dos mais novos, junto aos antigos, sentiu a resistência na transmissão do saber. "Nenhum
deles queria ensinar outros, ao contrário, escondiam os modo de produzir." Com o tempo
desenvolveu o próprio molde, um corpo mais bonito, em formato violão, influenciando outros
mestres que, a partir do ano 2000, passaram a seguir seu molde de corpo "violão”.
Em 1999 Alcides entrou pela primeira vez em uma universidade, ao participar de uma gravação
feita pela Rede Globo na UFMS. Havia muito preconceito e discriminação com a viola e o
violeiro, que não eram bem-vindos no ambiente acadêmico. E cita Habel dy Anjos como um
dos maiores estudiosos do assunto. Pesquisador, escritor, professor, concertista, produtor e
arranjador musical, Habel abriu portas e conseguiu incluir a viola de cocho como matéria
opcional na aula de musica na UFMT. “Diziam: Esse cara é louco de entrar como uma viola de
cocho numa universidade. O que é um absurdo pois ela é símbolo da nossa cultura. Mas há 30
anos atras era assim. Porque aqui nao se valorizava o que hoje se valoriza. O próprio violeiro
tinha vergonha dos violeiros do Vale do Rio Cuiabá, vergonha do próprio instrumento, vergonha
do instrumento que embalava a nossa cultura." Acides é uma referência no estado, um
guardião. A vergonha de filhos e parentes de violeiros enfrentou nos últimos quinze anos uma
revolução, de valorização, a qual ele foi um dos protagonistas.
ONDE CRIA?
Tombado e registrado, o modo de fazer a viola de cocho é uma tradição que se concentra nos
arredores do Vale do Rio Cuiaba, às margens do rio, em municípios como Barão de Melgaço,
Nobres, Diamantino e Rosario indo até Corumbá e Ladário. Berço de mestres como Seu
Natalino, pantaneiro, da cidade de Poconé, que faleceu com quase 100 anos, Seu Vitalino, Seu
Severino, Seu Agripino. Antes da divisão dos estados era uma só cultura. Hoje cada qual
imprime seu traço. Próximo a divisa, em Mato Grosso do Sul nota-se a forte presença de
solistas. A fala também é diferente, interferem mais. Já em Cuiabá o violeiro é mais reservado,
mais “caboclo”.
Foram pegos de surpresa quando o estado do Mato Grosso do Sul patenteou a viola de cocho
como um saber tradicional do estado, sendo que a maioria de seus artesãos migraram para lá
ou foram formados por mestres de ofício Mato Grossenses. E assim permanece. Por volta de
2003 contabilizaram mais de 60 artesãos de viola-de-cocho no estado e mais de 50 grupos de
siriri. Alcides foi um dos mestres que saiu de Cuiabá rumo a Bonito e Corumbá formar novos
artesãos no estado vizinho. Infelizmente, a cada oficina, com oito a quinze participantes,
apenas um leva o ofício adiante, quando muito.
Entre clientes ilustres como Dado Vila Lobos e a dupla sertaneja Edson e Hudson, as violas de
Alcides ganharam o mundo e protagonizaram inúmeros projetos da ANCINE e redes de
televisão. "Teve muitas palavras boas, influencias boas nessa trajetória que fez com que eu me
mantivesse nessa profissão, com esse reconhecimento que eu tenho. Se eu dependesse só do
poder publico eu não conseguiria sustentar minha familia. Se você não for forte e não acreditar
no que você faz, você não estaria onde você está hoje.”
Rede nacional do artesanato
cultural brasileiro
