O design afetivo de Paula Dib

Texto: Camila Fróis/ Fotos: Paula Dib e Camila Pinhiro

Designer, articuladora social, ceramista, mãe, curiosa, ciclista eventual, viajante e contadora de histórias  incríveis sobre os mais diversos Brasis e brasileiros que ela já conheceu. Com 40 anos e muitos giros no currículo, Paula Dib ficou de fato conhecida pela sua capacidade de intervir de forma sensível e potente em dezenas de comunidades de artesãos brasileiros e africanos, ajudando-os a se reinventar. O currículo criativo da moça é longo. Aos oito anos, ela já bordava com a avó, aos dezoito, fez trabalho voluntário numa vila aborígene na Austrália. Depois de formada em desenho industrial, seguiu na contramão da indústria e caiu em estradas empoeiradas rumo às roças e vilas de agricultores, caboclos e pescadores no interior do Brasil. Desde então, já ajudou os artesãos em couro do Cariri a resgatar o lado mais elaborado da estética sertaneja aproximando-os do mercado europeu, inventou um novo tipo de crochê na Bahia, estimulou escultores do Vale do Ribeira a tropicalizar suas criações, mergulhou no mundo fashion e conectou estilistas a adolescentes da periferia de Belo Horizonte para criar uma moda engajada.
 


Reserva da Jureia, no Vale do Ribeira (SP), onde Paula DIb liderou um projeto de capacitação para estimular as mulheres a se inspitrar na biodiversidade do quintal. Foto: Arquivo Pessoal Paula Dib
 

Quando era criança, era lá, na capital mineira, que Paula passava as férias com a avó prestigiando os cursos de bordado, ponto cruz e tricô que dona Zezé ministrava para deficientes visuais e surdos em sua casa. Desde essa época, a futura designer entendia - quase que intuitivamente - que limite era uma questão de perspectiva. Na Waldorf, escola em que estudou, ela também foi estimulada a buscar suas próprias soluções para os desafios cotidianos. “Lá todo mundo fazia tudo o que precisava fazer. Todo mundo fazia o pão, cuidava da horta, tricotava ou costurava a meia que furava”, lembra.

A opção pelo feito à mão

Impregnada dessas referências, Paula - que nasceu sem uma das mãos - acabou decidindo se dedicar inteiramente às manualidades, com uma naturalidade que intriga. A dificuldade física parece quase inexistente perto da generosidade que motiva o seu trabalho.  “Mais do que o trabalho artesanal, me interessa a cultura popular do País, as pessoas, a essência dos lugares e é isso que eu busco através do artesanato”, explica.

Esse desejo de atuar nas comunidades tradicionais surgiu ainda durante a faculdade, onde a formação acadêmica era voltada para as produções em grande escala. “O destaque era sempre a Feira de Milão, as referências internacionais, a tecnologia dos polímeros, a demanda da indústria, mas nunca a cultura brasileira", conta Paula. Foi quando surgiram as questões que motivam o trabalho da designer até hoje. ”Eu ficava pensando...como podemos diminuir o impacto ambiental da produção industrial? Como podemos valorizar nossos saberes tradicionais e as nossas matérias-primas? Como o design pode melhorar a vida das pessoas?” A partir dessas inquietações, Paula mergulhou no mundo da cerâmica com a ceramista japonesa Kimi Nii. “Na cerâmica, a gente mistura todos os elementos, a terra, a água, o fogo e o ar. Aquilo fazia muito sentido pra mim. Foi muito enriquecedor conhecer e participar desses processos”. 

Depois dessa experiência, Paula resolveu conhecer outras técnicas e outras comunidades de artesãos. Ao todo, em sua trajetória em busca da essência desses saberes populares do interior do País, ela já apoiou mais de 30 comunidades tradicionais, sempre estimulando-as a potencializar seu trabalho e a redescobrir sua própria identidade em criações cheias de história, afeto e beleza.




“Eu sempre tento ativar o que existe de melhor e mais criativo, o que brilha em cada lugar. Cada comunidade tem sua identidade, seus pontos luminosos. É para eles que eu olho”, conta Paula.

Segundo a designer, é comum que quando uma organização se propõe a interferir em um grupo social de baixa renda, os olhares se voltem para o que falta, para a escassez, para o que é difícil, para o que não é bom, para que daí se proponham soluções. “Esse também pode ser um caminho, mas não é o meu caminho. Eu olho para o que é forte, o que brilha, o que faz sentido e aí que coloco a energia.  È a partir daí que eu  desenvolvendo o trabalho”, conta. "Aos poucos, eu comecei a olhar para os lugares de forma diferente, percebendo a identidade de forma bem sutil: nas histórias, nas caminhadas, na conversa com as pessoas”, complementa.

 

 


Segundo Paula, uma das histórias que mais marcou suas trajetória foi a passagem por Helvécia, no Sul da Bahia. Um dia a gente estava conversando e as mulheres estavam fazendo crochê. Quando acabou a conversa, ao invés de arrematar, elas começaram a desfazer o trabalho. Questionadas pela designer, explicaram que elas não tinham lã pra crochetar e que era difícil encontrar o material na região. “As mulheres faziam crochê porque elas gostavam, pelo prazer de tecer, mas não tinham matéria-prima, então faziam e desfaziam. Daí comecei a pensar...o que a gente tem aqui em abundância?”. 

Vizinho de uma fábrica de papel e celulose, o município tinha a seu dispor um amplo suprimento de sobras da atividade industrial. Diante desse cenário, a designer propôs um encontro entre a técnica que as artesãs dominavam e o material que tinham em abundância: foi assim que, juntas, criaram o crochê com lascas de eucalipto.

A partir de então, as mulheres de Helvécia passaram a trançar uma coleção completa de produtos, entre cachepôs, fruteiras e luminárias. Sem abandonar suas agulhas, elas descobriram uma nova aplicação para suas habilidades. "E enquanto passam o tempo, dedicadas à sua nova produção, as artesãs reparam em volta e percebem que, para além da falta e da escassez, há sempre alguma riqueza que pode ser revelada", avalia Paula. 

A Mata Atlântica do quintal


Artesãs da Criqué Caiçara. Foto: Paula Dib

Outro trabalho muito expressivo da designer aconteceu junto aos artesãos que atuam com entalhe da madeira caixeta, extraída por manejo florestal na Estação Ecológica da Jureia, em um dos mais preservados trechos do sudeste: o Vale do Ribeira. Ali, no município da Cananéia, em meio à frondosa Mata Atlântica, que se debruça sobre o litoral paulista, uma comunidade caiçara tem conseguido preservar um modo de vida simples e suas raízes ligadas  à pesca, às expressões culturais locais como o fandango e aos fazeres artesanais, embora esses fossem pouco valorizados do ponto de vista econômico, o que desestimulava sua produção. 

Em 2012, através de uma intervenção realizada em parceria com a Artesol, Paula Dib com sua parceira, a designer Renata Mendes motivou os artesãos da Jureia a buscarem inspiração em seu próprio quintal para renovar sua coleção de objetos e melhorar sua rentabilidade. A comunidade produzia principalmente peças decorativas, mas ainda que vivessem rodeados pela exuberância da natureza, as referências para o seu artesanato nem sempre vinham da Estação Ecológica. "A partir de moldes e desenhos prontos, os artesãos costumavam esculpir peixes que os pescadores da região nunca pegaram em suas redes. Além de flores que não brotavam naqueles jardins", conta Paula. Cobertos de cores, os produtos eram pintados com tinta plástica", conta.




Criação da nova coleção Criqué Caiçara com inspiraçao em flora e fauna da Mata Atlântica. Foto: Camila Pinheiro/Projeto Mãos

Durante o projeto de capacitação liderado por Paula e Renata, os artesãos acabaram criando a Coleção Criqué Caiçara, inspirada em bichos e flores tropicais como as bromélias, orquídeas e muitos pássaros. A nova linha de produtos passou a incluir móbiles, cabideiros, brinquedos,  colheres e outros utensílios domésticos. Além disso, pigmentos à base de água acentuaram a beleza dos veios da caixeta.

"Mais integradas ao seu entorno, as peças revelaram novamente suas camadas mais profundas, entre elas, a identidade caiçara. E o valor intrínseco que o artesanato da Jureia tem por natureza", conta Paula.

Para a articuladora, o mais importante é que a identidade da comunidade se sobressaia à intervenção do designer. "Quando atua junto aos artesãos tradicionais, o designer não pode ter um trabalho autoral para não homogeinizar as riquezas das referências locais", analisa a articuladora. "Cada núcleo tem uma memória, uma ancestralidade, uma ou várias referências, muitas histórias e elas que têm que brilhar  ao final de cada processo de intervenção."

Sobre o autor

Texto: Camila Fróis/ Fotos: Paula Dib e Camila Pinhiro

Leia mais reportagens
Técnicas relacionadas